“Meu reino por um juiz
Na Itália, a Promotoria e magistratura são a mesma carreira, por absurdo que isso seja, e todos usam o título de ‘juiz’, ainda que seja acusador (...)
‘Por isso, não deve ser motivo de estranheza que os 'juízes' italianos pareçam se exceder no exercício de suas funções. Trata-se de inquisidores, trata-se de acusadores, perfeitamente situados no cargo que ocupam', escreveu a professora.
Na revista ‘Veja’ da última semana, o excelente jornalista André Petry informa que o juiz Sergio Moro tem um tripé constituído por prisão, delação e divulgação (...)
O texto da revista diz ainda que a delação seria vista pelo magistrado como 'a única forma de chegar aos mandantes de uma organização criminosa', como se fosse missão dele chegar a algo que não fosse a justiça do caso concreto (...)
O combate ao crime é típica atividade do Executivo, por meio da polícia e do Ministério Público, que é seu braço independente e autônomo”
Sem tomar partido ou fazer juízo de valor a respeito dos acusados no caso da Lava Jato, o texto acima é bom para nos lembrar alguns pontos básicos de democracia:
Primeiro, bons magistrados resistem a aceitar reportagens como material argumentativo ou indício em processos por uma razão muito simples: é fácil plantar informações junto à mídia. E se resistem a aceitar reportagens como material argumentativo, resistem ainda mais a aceitar tais reportagens como prova em um processo. Os riscos são muito grandes, a começar pelo fato de que jornalistas podem sempre proteger suas fontes atrás do sigilo, o que torna muito difícil validar o que a imprensa diz. O normal é que em democracias sérias a imprensa se utilize de advogados e Ministério Público, e não o contrário. Na dúvida, bons magistrados se baseiam apenas em informações sólidas trazidas ao processos.
Mas isso não quer dizer que mesmo os melhores magistrados sejam imunes a pressões originadas fora do processo. São seres humanos e, como tais, ao menos os melhores magistrados se questionam todo o tempo.
O mesmo vale para o Ministério Público, AGU, procuradorias etc.
Por isso mesmo bons advogados e membros do Ministério Público tentam cultivar relações com jornalistas. E, por isso mesmo, sempre que ouvimos advogados e Ministério Público citando reportagens jornalísticas, nós,, leitores, devemos tomar cuidado. Se mesmo magistrados estão expostos a influências, jornalistas estão ainda mais.
O segundo ponto é em relação à magistratura italiana. O que o artigo diz é verdade, e o mesmo vale para a espanhola: Ministério Público e a magistratura judicante (aquela que julga) são partes da mesma instituição - magistratura - naqueles países. Seus membros prestam o mesmo concurso público, e estão dentro da mesma carreira e instituição.
Mas, dentro da instituição, ficam separados em funções diferentes. A mesma pessoa que julga pela manhã não acusa depois do almoço, da mesma forma que em uma empresa, a auditoria interna é separada da tesouraria, que é separada da área de investimentos, ainda que sejam todos funcionários da mesma empresa e muitas vezes tenham entrado pelo mesmo processo seletivo.
Os membros da magistratura desses países podem, sim, pedir a transferência de uma função para outra, mas ao serem transferidos, assumem funções distintas. Nada muito diferente do que ocorre no Brasil com a nomeação de advogados e membros do Ministério Público para os mais diversos tribunais, inclusive os superiores e STF, ou nos EUA e na Inglaterra para as respectivas supremas cortes.
O simples fato de serem parte de uma mesma carreira não os tornam mais ou menos imparciais. A qualidade do magistrado ou sua capacidade de ser imparcial não está relacionada ao nome do cargo ou da instituição, mas à qualidade do material humano de quem ocupa o cargo.
Vale lembrar que foram esses juízes italianos, agindo como Ministério Público, que colocaram limites na atuação da máfia italiana. E foi um juiz espanhol, agindo como Ministério Público, quem mais chegou próximo de colocar o ex-ditador Augusto Pinochet no banco dos réus.
Por fim, o texto levanta uma questão importante: de quem é a obrigação de combater o crime? Segundo o autor, é exclusiva do Executivo. Mas é?
Crime é tudo aquilo que a sociedade define como inaceitável e que, por isso mesmo, deve ser punido. A definição daquilo que é inaceitável é estabelecida pelo Legislativo através de leis. A punição, é pelo Judiciário através da aplicação de tais leis. Logo, se ‘combater’ é correr atrás de bandido pelas ruas, de fato essa é a função do Executivo. Mas se a combater significa lutar contra as condutas inaceitáveis em uma sociedade, essa função não é apenas dos três poderes, mas de cada um de nós, incluindo imprensa e advogados.