Mas ela também serve como exemplo de algo que tem sido pouco discutido: a cadeia de comando.
Ao agirem fora da lei, não são apenas os policiais que se expõem, mas também seus comandantes. Isso porque nada é tão importante na estrutura militar quanto a cadeia de comando.
A quebra da cadeia de comando é tão grave que, no Brasil, a recusa de obediência hierárquica pode ser punida com a pena de morte (fuzilamento) durante uma guerra. É a obediência hierárquica que mantêm qualquer estrutura militar coesa.
Quando um policial comete uma ilegalidade, ele é responsável por seus atos. Mas quando uma tropa comete a mesma ilegalidade de forma recorrente, é sintoma de que há um problema muito mais grave na cadeia de comando acima.
Se policiais removem a identificação de seus uniformes ou recusam-se a se identificarem ao darem voz de prisão ou cometem qualquer outra ilegalidade de forma sistemática, há três hipóteses, e todas acabam (ou deveriam acabar) com seu comandante sofrendo consequências negativas.
Ou os policiais agiram seguindo ordens de seu comandante, e nesse caso o comandante passa a ser também legalmente responsável; ou eles agiram por conta própria, mas o comandante estava ciente e nada fez para impedir, e nesse caso ele também responde legalmente por sua omissão; ou eles agiram em desrespeito à cadeia de comando, e nesse caso o comandante perdeu controle de sua tropa, o que, embora não seja ilegal, mostra que ele não está preparado para exercer seu papel de liderança.
Por outro lado, os manifestantes não têm cadeia de comando. Pelo contrário: ao que tudo indica, não há sequer organizadores. Organizam-se através de redes de contatos. Um diz para o outro, que repassa a mensagem para outros. Alguns recebem a mesma mensagem dezenas de vezes. Outros não ficam sequer sabendo.
Logo, seria difícil responsabilizar alguém por ter permitido que alguns (ou muitos) manifestantes pratiquem crimes. Somente quem de fato praticou o crime (ou, quando muito, o amigo que incentivou a prática do crime) pode ser punido.
Mas aí aparece um outro problema.
A vantagem de existir uma cadeia de comando é que há apenas uma cabeça. Se ela errar, ela responde pelo erro. E ela também controla seus subordinados. Em uma negociação, não é necessário colocar 2 mil PMs ao redor da mesa: basta um comandante. Naquele momento, o comandante é a corporação que representa. Ele decide em nome de seus subalternos.
Mas em um grupo amorfo, como o dos manifestantes, não há um representante com quem se possa negociar, que possa dizer o que os manifestantes de fato querem, ou que tenha a legitimidade de dizer ‘ótimo, conseguimos o que queríamos e agora podemos voltar para casa’. Falta ao grupo amorfo uma cadeia de comando que consiga não só controlar o ‘seu lado’, mas também interagir e negociar com o ‘outro lado’.
A maior vantagem de uma rede amorfa é que não adianta a polícia prender esse ou aquele indivíduo: a rede continua a existir.
E essa é também sua maior desvantagem. Como não se tem uma cadeia de comando, uma negociação se torna muito mais difícil e demorada. Às vezes impossível. E não adianta uma ou algumas pessoas dizerem ‘não vamos cometer crimes’. A única forma de se resolver o problema é por meio de uma solução drástica, ou conseguindo achar um denominador comum entre milhares de pessoas.
Se vale a analogia, é justamente isso que acontece, por exemplo, com a internet. Você pode tirar milhares de computadores de circulação, mas a internet continua a existir porque nenhum computador sozinho representa a internet. Ela surgiu justamente como alternativa às ameaças militares de outros países. Ao criar uma rede amorfa, tornou-se praticamente impossível para um exército inimigo vencê-la em um confronto direto. Não haveria uma pessoa a capturar ou uma cidade a capitular. Sem uma cadeia de comando, o inimigo torna-se difuso. Apenas soluções drásticas (como cortar toda a eletricidade e a rede telefônica de um país) ou que encontrem um ponto em comum entre milhares de computadores (é justamente isso que os programadores de vírus fazem: ao acharem uma fraqueza em comum em milhares de computadores, aproveitam-se de suas interconexões para disseminar o vírus que ataca aquela vulnerabilidade).
PS: Aos que forem presos por policiais sem identificação: observe o carro da polícia. Ele normalmente tem o número do batalhão no qual aquele policial está lotado. Não é o ideal, mas ao saber o batalhão, fica mais fácil, mais tarde, descobrir quem é o policial que o prendeu ilegalmente.