“Estudantes de direito terão de fazer estágio em órgãos públicos
Estudantes de direito de todo o país terão, obrigatoriamente, de fazer estágio em órgãos públicos. A medida faz parte de mudanças discutidas entre Ministério da Educação e OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) para abertura de faculdades e formação desses profissionais.
‘Vamos exigir estágio em campo de prática do direito nas instituições públicas: tribunais, Ministério Público, defensorias e órgãos afins’, disse ontem o ministro Aloizio Mercadante (Educação). (...) ‘Os dados estão mostrando (...) [que] a reprovação na OAB atinge níveis inaceitáveis. Vamos mudar a política de expansão e o processo de formação dos novos advogados.’”
O mundo jurídico é vasto e está em constante modificação, porque a própria sociedade muda. Algo aprendido agora estará desatualizado no ano seguinte porque a lei mudou. Para complicar, o Brasil é um dos países em que mais se produzem leis e as faculdades de direito – ao menos as boas – lutam para ensinar ao menos as mais importantes aos alunos durante os cinco anos da graduação.
Sobra pouco tempo para a prática. Para transportar o aluno do plano teórico das leis (que preveem como as coisas deveriam ser em um mundo ideal e, portanto, é necessariamente geral e abstrata), para o plano prático de como essas mesmas leis são aplicadas no mundo real, aos conflitos entre pessoas reais. É aí que entra o papel do estágio.
Segundo a Lei do Estágio (Lei 11.788/2008) – sim, no Brasil, temos até uma lei para regrar as relações de estágio – ele deve ser um “ato educativo escolar supervisionado, desenvolvido em ambiente de trabalho, que visa à preparação para o trabalho produtivo de educandos que estejam frequentando o ensino regular em instituições de educação superior, de educação profissional de ensino médio, da educação especial e dos anos finais do ensino fundamental, na modalidade profissional da educação de jovens e adultos.”
Ou seja, o estágio possui caráter educativo complementar, integrando, exemplificando e tornando concreto o conhecimento teórico que o estudante recebeu – ou deveria ter recebido – nas faculdades de direito. A ideia do estágio segue a antiga máxima de Confúcio, segundo a qual, “o que eu ouço, eu esqueço. O que eu vejo, eu lembro. O que eu faço, eu aprendo.”
Por esse ângulo, é louvável qualquer iniciativa de ampliar o estágio, proporcionando a todos os estudantes de direito o acesso ao aprendizado prático que ele proporciona. Assim como você não gostaria de entrar em avião pilotado por alguém que nunca voou antes, ou ser operado por um cirurgião que nunca segurou um bisturi, você certamente não quer um advogado que não tem qualquer experiência prática.
O risco, no entanto, é transformar o estudante em mão de obra barata, preocupando-se muito mais com o que o estudante pode dar à instituição do que com o que a instituição deve dar ao estudante em termos de experiência de aprendizado. E aqui não importa se a instituição é pública ou privada: se o estudante passa a ser mão de obra barata, duas coisas acontecerão: primeiro, o estudante, necessariamente, deixará de aprender aquilo que deveria aprender. Por que? Porque se o estudante vira mão de obra barata, suas tarefas serão repetitivas. E a ideia do estágio é justamente expor o estagiário a uma grande diversidade de atividades. Se o estagiário faz a mesma coisa durante seis meses, é porque alguma coisa está errada.
Segundo, o mercado de trabalho sofre negativamente, já que um outro profissional – mais caro – deixará de ser contratado para fazer aquele trabalho.
Nas instituições públicas ligadas à prática do direito, dada a sensível escassez de mão de obra, esse risco torna-se ainda maior. E a única forma de mitigá-lo é montar verdadeiros programas de estágio, que permitam ao estudante de fato colocar em prática o que aprendeu dentro de sala.
Mas existem outros dois riscos aqui: e se o estudante não tiver qualquer interesse em direito público? Estaremos forçando um estudante a trabalhar em uma área na qual jamais se envolverá mais tarde. Teremos um estudante desmotivado vendo o estágio como perda de tempo. Em pouco tempo teremos casos de estagiários que entregam parte de sua remuneração ao chefe apenas para que ele diga que o estudante compareceu ao estágio, sem que ele jamais tenha entrado na repartição.
O segundo problema é consequência do primeiro: ainda que o estudante desmotivado apareça para trabalhar, você gostaria de ser atendido por alguém que está ali de forma forçada e apenas para cumprir uma formalidade? Atualmente menos de 20% dos estudantes de direito passam no teste da OAB. Ou seja, ao menos um em cada quatro estagiários não saberá o suficiente para passar no exame. E ainda assim estarão lidando com questões essenciais para a sociedade, sem possibilidade de alternativa para o contribuinte.
Em uma empresa privada, o cliente pode simplesmente procurar outro fornecedor de serviços, mas isso quase nunca é possível em relação ao governo. Se você está insatisfeito com a polícia ou com a Receita Federal, você não pode simplesmente dizer 'não gostei da qualidade de seu serviço e vou procurar seu concorrente'.
'Ah, mas ele não estará lidando com questões importantes, logo não poderá causar danos'. Mas, então, exatamente o que ele estará fazendo? Afinal, a ideia por trás da obrigatoriedade é aprender praticando, e não apenas servindo como copeiro de uma repartição pública.
Se o estágio é obrigatório e nem sociedade e nem estudante tem opção, caberá ao governo garantir que ambos não saiam prejudicados.