"Procuradora pede diligências ao TSE e adia criação do PSD
Um pedido da vice-procuradora-geral eleitoral, Sandra Cureau, atrasará em dez dias a análise do Tribunal Superior Eleitoral sobre a criação do PSD, sigla do prefeito paulistano Gilberto Kassab.
Cureau requisitou ao tribunal a realização de diligências para que o partido explique as suspeitas de fraude em assinaturas de eleitores.
O pedido foi negado pela relatora do caso, ministra do TSE Nancy Andrighi. Apesar disso, Andrighi determinou a reabertura de prazo para que a Procuradoria Geral Eleitoral emita sua opinião final sobre a criação do PSD (…)
A vice-procuradora não detalhou o que pretendia. Só pediu, genericamente, a realização de diligências.
Há denúncias amplamente noticiadas pela imprensa, muitas das quais aportaram no Ministério Público Eleitoral em todo o território nacional, sobre supostas fraudes nas coletas de assinaturas nas listas de apoiamento, argumentou Cureau”
Sem entrar no debate se há ou não assinaturas fraudulentas (só a justiça poderá decidir isso), existem duas coisas muito interessantes nessa matéria que levantam questões fundamentais de uma democracia.
Primeiro, a procuradora pede para que o partido (ou futuro partido) explique as suspeitas de fraude.
Em qualquer democracia, o ônus da prova cabe a quem acusa. Não cabe a quem quer criar o partido explicar as denúncias de fraude: cabe à procuradoria provar que há fraude. Nós sempre devemos partir do princípio de que todos somos inocentes até que se prove em contrário, e não que todos somos culpados até que consigamos provar que somos inocentes.
Isso é fundamental para a democracia, mas também para a economia do país.
Imagine que o ônus da prova coubesse aos acusados e não aos acusadores. Por definição, esse sistema ditatorial permitiria que qualquer um fosse acusado a qualquer momento de qualquer coisa, e exceto se você provasse o contrário, você sofreria uma punição. Você nesse exato momento poderia estar sendo acusado de ser um homicida. Mas como é que você vai provar que não é um homicida? Exceto se você esteve sua vida inteira acompanhado por testemunhas, filmado etc, é impossível você provar que não é um criminoso. Você não poderia sequer ir ao banheiro sozinho porque você poderia estar matando alguém naquele momento. Todas as suas ações, de seu nascimento à sua morte, precisariam estar sendo registradas para mostrar que você é inocente.
Óbvio que essa é uma situação estúpida. Da mesma forma como é estúpida a pergunta dos policiais que sempre vemos em filmes: “onde você estava ontem a noite?”. Eu não preciso provar onde eu estava, a polícia é quem precisa provar que eu estava cometendo o crime que alega que eu cometi. Meu único dever é provar que as provas produzidas por ela são questionáveis ou ineficazes.
E é por isso que muitas ditaduras literalmente vão à falência. Imagine o custo econômico desse sistema, com as pessoas sendo obrigadas a produzirem provas de onde estão e o que estão fazendo todo o tempo apenas para mostrar que não estão fazendo nada errado. Tempo é dinheiro, e o tempo perdido com isso é dinheiro jogado pela janela. Aliás, é um dos argumentos contra a existência de práticas como reconhecimento de firma em cartório, que nada mais é do que uma presunção de que você não é quem diz ser, exceto se provar em contrário/reconhecer sua assinatura.
O custo de defesa se torna muito alto, e isso é economicamente perverso para os indivíduos, que gastam muito tempo tentando produzir provas para se defenderem de futuras acusações, e para a sociedade, já que milhões de indivíduos que poderiam estar produzindo e gerando riqueza passam boa parte de seu tempo se defendendo ou preparando provas para futuras defesas (cálculo rápido e conservador: dividindo o PIB per capita pelo número de horas trabalhadas por ano, cada minuto gasto por brasileiros por ano em uma fila de cartório custa, por baixo, cerca de R$0,15. Se o brasileiro perde em média 40 minutos por anos saindo do trabalho, ficando na fila para reconhecer sua assinatura e voltando para o trabalho, isso representa R$ 1,1 bilhão de perda em nosso PIB todos os anos)*.
Enfim, o ônus da prova é de quem acusa não só porque esse é um princípio democrático, mas porque ficar produzindo provas para se defender caso um dia venha a ser acusado é uma perda de tempo enorme com sérias consequências econômicas. No caso da matérias acima, a procuradora primeiro deve apresentar provas do que alega, para apenas depois o partido ter ônus de refutar as provas apresentadas pela procuradora.
O segundo ponto importante é que ela diz que “há denúncias amplamente noticiadas pela imprensa”. Mas ninguém pode ser considerado culpado baseado em denúncia da imprensa. Provar a culpa cabe a quem acusa, e não a quem divulga a acusação. A imprensa está apenas divulgando. Seu trabalho de investigação, por mais interessante, democrático e necessário que seja (especialmente em um país como o nosso, no qual as instituições que devem fiscalizar nem sempre conseguem fazê-lo), não pode substituir o trabalho das instituições públicas.
Esse, aliás, é um problema grave nas ditaduras: o governo ou algum grupo que controla a imprensa planta uma notícia e depois usa aquela mesma notícia para acusar seus inimigos. No Brasil, onde as instituições democráticas ainda estão engatinhando depois de tantas ditaduras, esse é um problema para o qual devemos estar atentos.
A função de investigar é da polícia ou do Ministério Público. Você e eu pagamos tributos justamente para isso. Se essas duas instituições precisam se apoiar em investigações feitas por grupos privados (jornais), para que exatamente eles existem e por que pagamos nossos tributos? Mas não é apenas um problema de desperdício de recursos. É um problema também de alocação de recursos. O papel da imprensa é informar, mas o papel dos veículos de imprensa é gerar lucro a seus donos. Elas são empresas. Informação que não vende não é notícia. Logo, jornais, telejornais etc focam naquilo que vende. No homem que morde o cachorro.
A democracia depende não do foco naquilo que vende, mas na punição de todas as condutas que sejam proibidas, independentes de quantos jornais aquela notícia venda. A punição de um caso desconhecido é tão importante quanto a punição de um caso conhecido. Além disso, alguém não pode esquivar-se da lei apenas porque consegue controlar um ou vários veículos de comunicação.
Quando a polícia ou o Ministério Público transferem para a imprensa o dever de investigar, eles não estão apenas transferindo a responsabilidade que é sua, mas estão também estreitando o leque de casos que irão ser investigados e possivelmente punidos. E isso faz com que a punição se torne um fator de vendas e não resultado da aplicação das leis de forma igualitária. E óbvio que ninguém quer viver em um país no qual os crimes que não param nas páginas do jornal, não são punido.
As instituições públicas existem justamente para evitarem que os pilares de uma sociedade – como justiça, educação, proteção etc – fiquem à mercê de interesses privados.
* Excluindo sábados, domingos, feriados nacionais e uma média de 4 feriados estaduais por ano, e incluindo-se os feriados municipais, restam cerca de 245 dias úteis para serem trabalhados por ano no Brasil. Com uma carga de 44 horas semanais de trabalho, isso dá uma média de 8,5 horas diárias, ou algo como 125 mil minutos disponíveis para o trabalho por ano. Com um PIB per capita de R$19 mil, cada minuto trabalhado por cada brasileiro contribui cerca de R$0,15 para a economia. Se os 190 milhões de brasileiros perdem em média 40 minutos por ano reconhecendo firma (não existe estatística a respeito), isso é uma perda de R$1,15bi para o país.