“Duas mulheres e um homem oficializam união estável em SP
Um trio formado por duas mulheres e um homem oficializou em um cartório de Tupã, no interior de São Paulo, uma união estável que já dura três anos. Eles fizeram uma escritura declaratória de união poliafetiva (…)
Segundo o tabelião substituto Luís Henrique Parussolo, a escritura foi apresentada num congresso realizado no Rio Grande do Sul. O documento estabelece regime de comunhão parcial de bens e registra que um deles vai administrar os bens. A escritura não garante os mesmos direitos de uma família, como pensão por morte. Mas, com o documento, o trio poderá recorrer à Justiça para conseguir benefícios típicos de um casal. O cartório não divulgou os nomes dos três”.
No direito, casamento não é apenas amor: é também uma sociedade econômica. As duas partes passam a ter uma relação econômica diferente, com interesses recíprocos sobre o patrimônio do outro, e obrigações econômicas mútuas. Por exemplo, dependendo do regime do casamento, os cônjuges passam a ter direito à metade do que o outro já possuía antes do casamento, passam a ter obrigação de ajudar na administração do lar etc.
Mas no casamento também nascem obrigações e direitos do casal em relação a terceiros, sejam privados, seja o Estado. Por exemplo, quando a viúva recebe parte ou totalidade da herança do falecido, o Estado transfere essa herança por causa da relação que existiu entre ela e o morto.
Pois bem, os direitos e obrigações do primeiro grupo (os interesses recíprocos), são possíveis de serem estabelecidos em contrato. É assim, por exemplo, que os homossexuais faziam até recentemente para garantirem seus direitos patrimoniais mútuos quando entravam em uma relação duradoura com outra pessoa: impedidos de se casarem ou formarem união estável, faziam um contrato no qual se concediam direitos patrimoniais recíprocos. Um contrato como qualquer outro contrato formal, como o de compra e venda de uma casa ou estabelecimento de uma empresa.
O problema de tentar replicar um casamento ou união estável através de um contrato comum surge não na relação entre as duas pessoas, mas na relação entre o casal e o resto do mundo. Um contrato convencional só pode criar direitos e obrigações entre as partes envolvidas (imagine a confusão que seria se dois de seus inimigos pudessem fazer um contrato entre si estabelecendo direitos e obrigações em relação a você ou seu patrimônio. Você e seu patrimônio não podem ser afetados pelo contrato deles porque você não é parte daquele contrato).
E é aí que entra o problema da matéria acima. União estável é o reconhecimento legal de uma união factual parecida com o casamento, mas sem preencher as formalidades legais. O que eles fizeram na matéria acima foi justamente o contrário: eles buscaram formalizar uma relação que não é parecida com um casamento.
Do ponto de vista jurídico, o que os três fizeram foi apenas criar um contrato entre si sobre o patrimônio que possuem, assim como sócios fazem quando formam uma empresa ou os homossexuais eram obrigados a fazerem até o ano passado. Poderiam incluir até mais de três pessoas. O ‘marido’ e suas diversas esposas poderiam ter feito um contrato com 6, 7, 20 ‘concubinas’ (se elas aceitassem ser parte do harém, óbvio).
Mas isso não gera obrigações e direitos dos envolvidos em relação ao mundo. E é por isso que o documento citado na matéria acima poderá servir para reivindicar direitos típicos de um casal: qualquer pessoa tem o direito de pedir algo à Justiça, mas isso não quer dizer que temos direito ao que estamos pedindo.
E não é porque a Justiça é conservadora que ela não reconhece esse tipo de relação. O problema para a Justiça é criar e administrar direitos e obrigações em relação a terceiros em algo complexo e que não está previsto em lei. Imagine como fazer o abatimento de imposto de renda, prover pensões etc. Ou imagine um casamento com dois homens e uma mulher: se ela der a luz, os dois terão direito à licença paternidade? Afinal, a licença paternidade não é dada necessariamente ao pai biológico. E se Dona Flor for ‘casada’ não com dois, mas com cinco ‘maridos’? E se um dos maridos morrer, os demais terão direito à pensão, ou só Dona Flor? E quantas (e quem) seriam as sogras? Enfim, o Código Civil precisou de mais de 500 artigos para regular uma família com dois cônjuges apenas. O uso desses artigos para lidar com relações entre homossexuais é relativamente simples porque são apenas duas pessoas (a única diferença é que são do mesmo sexo). Mas na matéria acima, são mais de duas pessoas, e isso é algo muito mais complexo e que não é possível simplesmente aplicar diretamente as leis de família já existentes.
Por isso que temos de ter cuidado quando achamos que o fato de as partes terem formalizado uma relação patrimonial significa que a Justiça reconhecerá isso como uma união estável ou casamento: em direito, ter o direito de pedir não é a mesma coisa que ter direito ao que foi pedido.