Em Poder:
“Congresso quer votar fim do foro privilegiado até sexta
Em mais uma tentativa de dar resposta às manifestações populares, o Congresso articula votar nesta semana o fim do foro privilegiado para autoridades dos três Poderes. Câmara e Senado marcaram a votação de propostas que acabam com o privilégio, o que obrigaria autoridades a responder em primeira instância por crimes cometidos.
Hoje, têm direito ao privilégio o presidente da República, deputados, senadores, ministros, procurador-geral da República, comandantes militares, governadores e prefeitos, entre outras autoridades.
Todos são julgados por instâncias como Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça. Se a proposta passar, responderão por crimes na primeira instância.”
E em Cotidiano:
“Surpreendidas, entidades médicas dizem que medidas são arbitrárias
Entidades médicas afirmam que foram surpreendidas pelo anúncio do governo federal de que aumentará a carga horária do curso e obrigará alunos a atuarem no SUS.
O presidente do CFM (Conselho Federal de Medicina), Roberto Luiz d'Ávila, comparou a obrigatoriedade a um ato de país totalitário.”
No primeiro texto acima, quais serão as consequências do fim do foro privilegiado para os casos já em tramitação? E para os casos em que já tenha ocorrido uma decisão colegiada, mas que aguardam recursos (como o Mensalão)? Já valerá para quem está no exercício de seu mandato ou apenas para novos mandatos?
No segundo texto, qual é o risco de criarmos um incentivo para que os melhores alunos passem a procurar cursos alternativos quem não demandem residência/estágio no SUS, como Odontologia e, por conta disso, alunos menos brilhantes acabem entrando no curso de medicina e o serviço médico, como um todo, perca qualidade? O que acontecerá com quem acabou de entrar no curso? E com quem já está fazendo residência? E quem trancou o curso e deseja retornar? E quais as consequências financeiras para o erário público ter de arcar com tais estágios? Simplesmente aumentar a carga horária resolve ou os problemas com a qualidade de nossas faculdades começa no ensino de base e não na faculdade?
O que há em comum entre os dois textos? Uma falsa opção entre aprovar algo rapidamente e aprovar algo de forma bem pensada, como se fossem mutuamente excludentes.
Mesmo projetos que realmente merecem ser aprovados - e pode ser o caso dos projetos acima - precisam ser analisados com cuidado. Não podemos legislar 'de surpresa'.
Quando olhamos um projeto de lei, devemos nos perguntar se cada pergunta foi respondida adequadamente no seu texto. Adequadamente significa que o projeto aborda o assunto e que estamos satisfeitos com a forma com que aborda o assunto e aceitamos suas consequências. Não podemos aprovar e depois ‘descobrirmos’ que aprovamos algo que gera consequências desastrosas.
Três exemplos de como projetos aprovados sem a devida análise acabam gerando consequências desastrosas:
Em 2009 consolidamos os crimes de estupro e atentando violento ao pudor em um único crime, mas 'esquecemos' de dizer o que aconteceria com quem havia sido condenado pelos dois crimes. A consequência foi uma onda de pedidos de liberação de criminosos que já haviam cumprido penas suficientes para um dos crimes mas não para ambos os crimes.
Em 2010, aprovamos a lei da ‘Ficha Limpa’, mas nos 'esquecemos' que ela não passaria a surtir efeitos nas eleições daquele mesmo ano. O debate que se seguiu nos tribunais durou meses, durante os quais não sabíamos quem realmente havia sido eleito.
Este ano aprovamos a criação de novos TRFs, mas nos 'esquecemos' de analisar não só o custo de sua implementação, mas também os custos de adaptação no Ministério Público Federal e na AGU (falamos disso ontem na edição impressa da Folha).
Aprovar algo rapidamente não significa aprovar algo sem pensar em suas consequências.
Além disso demorarmos para aprovar algo não significa necessariamente que estaremos aumentando sua qualidade. Alguns (poucos) debates envelhecem como bons vinho, outros tornam-se vinagre.
Se demoramos muito para aprovar algo, há boa probabilidade de a análise tornar-se ultrapassada. O projeto do Código Civil, por exemplo, apresentado no início da década de 1970, já estava desatualizado quando foi finalmente aprovado, em 2001. Duas décadas de debates não o tornaram melhor, mas apenas envelheceram algumas de suas partes, que estão sendo corrigidas através de novas leis ou de interpretação judicial (por exemplo, a união e o casamento entre pessoas do mesmo sexo).
Por outro lado, votarmos algo rapidamente não significa que tenhamos que abdicar da análise sobre suas consequências antes de o aprovarmos (ou rejeitarmos).
Infelizmente, no Brasil vemos as duas coisas como extremos opostos de uma mesma linha: ou aprovamos rapidamente ou demoramos para debater o projeto. Mas essa é uma dicotomia ilusória, criada para justificar tanto nossa inércia legislativa quanto nosso arroubos legislativos. É o pior dos dos mundos. Por que não podemos aprovar algo rapidamente e com a devida análise?
O problema surge quando aprovamos de forma afoita porque, mesmo quando ‘dá certo’, é com base na sorte. E não podemos construir uma democracia com ‘base na sorte’.