“Funcionárias agridem idosa de 99 anos no Rio
Uma auxiliar de enfermagem e uma cozinheira contratadas para cuidar de uma idosa de 99 anos foram flagradas, num vídeo, agredindo-a no apartamento dela no Rio.
Margarida Ferreira, 43, e Maria José de Lacerda, 54, serão indiciadas sob acusação de tortura, cuja pena prevista é de de dois a oito anos de prisão.
A delegada Catarina Noble, da Delegacia Especial de Atendimento à Pessoa de Terceira Idade do Rio, informou que pedirá a prisão preventiva das duas até sexta, quando deve concluir o inquérito - o vídeo não poder ser considerado como flagrante, apenas como prova.
As imagens, divulgadas no domingo pelo ‘Fantástico’, da TV Globo, foram captadas por câmeras instaladas pelo filho da idosa, que começou a desconfiar das funcionárias depois de queixas da mãe.
No vídeo, Margarida aparece impedindo a idosa de se levantar do sofá com empurrões e jogando um travesseiro em seu rosto.
Maria José dá palmadas e amarra as pernas da idosa para que ela não se levante.
Ao final do vídeo, a cozinheira a derruba no chão ao tentar colocá-la numa cadeira de rodas”.
As suspeitas foram indiciadas por tortura (e não ‘indiciadas sob acusação’. No Brasil a polícia não tem poder de acusar. Apenas o Ministério Público tem esse poder).
O art. 1o da Lei 9.455 diz que as seguintes condutas são consideradas tortura:
Primeiro, “Constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa”
A vítima na matéria sofreu uma violência tanto física quanto mental. Mas isso só não basta para que haja tortura, de acordo com a lei. O criminoso precisa ter uma das três intenções enumeradas nas alíneas ‘a’, ‘b’ e ‘c’.
As suspeitas não estavam tentando obter informação, declaração ou confissão da idosa. Logo, a primeira hipótese está descartada.
Tampouco tinham como objetivo levar a vítima a cometer um crime (segunda hipótese), ou usaram a violência por causa de sua raça ou religião (terceira hipótese). Note que a lei não fala em idade, (ou sexo, orientação sexual, nacionalidade ou origem regional).
Mas a lei também diz que é tortura “submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”. É aqui que entra a possibilidade de indiciar as suspeitas acima. Mas não é tão simples como parece.
A idosa estava sob poder das suas suspeitas? Provavelmente, já que o poder é de fato e não de direito. Em português isso significa que o que importa não é se a pessoa tinha autorização legal para exercer poder sobre a vítima, mas se o criminoso de fato – ainda que ilegalmente – tinha poder sobre a vítima. Se a dona da casa – por sua condição vulnerável – depende da cozinheira, a cozinheira passa a ter poder de fato sobre a dona da casa.
Mas só o poder não basta. É necessário ocorrer intenso sofrimento. Esse sofrimento pode ser físico ou mental, não importa. Mas precisa ser intenso.
A lei não diz o que é ‘intenso’. Fica a cargo do magistrado estabelecer se o sofrimento naquele caso é intenso. A lei não diz onde está o limite entre ‘intenso’ e ‘nem tão intenso assim’. E também a lei diz em relação a quem a intensidade deve ser medida. Em relação a uma pessoa ‘normal’ ou àquela vítima? Se é em relação àquela vítima o magistrado agora precisa julgar a situação não a partir do ponto de vista de uma ‘pessoa normal’ ou do criminoso, mas a partir do ponto de vista da vítima. Ele precisará ver o mundo a partir dos olhos da vítima, algo que nem sempre é fácil (e nem sempre isso será favorável à vítima: imagine uma vítima que tenha maior resistência a dor, por exemplo).
Mas ainda que isso seja resolvido, o criminoso precisa ter tido a intenção de aplicar um castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Castigar é punir por algo, admoestar, repreender, corrigir. Ou seja, a vítima precisa ter feito algo que não deveria, ou deixado de fazer algo que deveria fazer. E aí surge o problema com esse inciso: é difícil aplicá-lo quando o criminoso age puramente por sadismo, sem um objetivo que não o de fazer com que a vítima sofra.
Se é tão complicado punir o que ocorreu baseado em tortura, então por que a delegada não as indiciou por maus-tratos, que é um outro crime, mas parecido com tortura?
Até que o inquérito seja concluído, não dá para saber o que se passa pela cabeça da delegada, mas as duas possibilidades mais óbvias são:
Primeiro, por conta das penas. Tortura tem uma pena que chega a 8 anos e é crime hediondo (é tratada de forma mais severa que os demais crimes), enquanto os maus-tratos tem uma pena que chega, quando muito, a 1 ano.
E, segundo, porque maus tratos é “expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina”. Nos maus tratos não basta que a pessoa esteja sob a vigilância, guarda ou autoridade do criminoso. Ela precisa estar sob o poder do criminoso para um propósito específico: educação, ensino, tratamento ou custódia.
A vítima na matéria acima não estava com a cozinheira para ser educada, ensinada, tratada ou presa. Ela estava com a criminosa para ser cuidada ou alimentada.
Enfim, em ambos os crimes o fato de que o legislador disse que o criminoso precisa ter um propósito torna a aplicação da lei mais difícil.
E se não for possível aplicar nenhum dos dois crimes? Nesse caso a solução é tentar aplicar um crime no qual o propósito do criminoso não importe, apenas as consequências de suas ações: lesão corporal.