“Maluf critica Jersey e elogia 'isenção' da Justiça brasileira
Alvo de uma condenação da ilha de Jersey que determina o ressarcimento de R$ 60 milhões aos cofres da cidade de São Paulo, o ex-prefeito Paulo Maluf (PP) criticou a Justiça do paraíso fiscal britânico dizendo que no Brasil cumprem-se as premissas republicanas de isenção e direito à ampla defesa.
‘A diferença entre a Justiça brasileira e a de outros países é que no Brasil cumpre-se a lei e a Constituição, assegurando-se a todos o amplo direito de defesa. A Justiça brasileira é isenta e não julga sob pressão de ninguém’, diz a nota de sua assessoria.
Diferentemente da ilha britânica, que em menos de quatro anos proferiu a sentença do caso Maluf, a Justiça brasileira abriga há dez anos uma ação de improbidade sobre o mesmo assunto --e ela ainda não saiu da fase inicial (...)
Na ilha britânica, cujo processo teve início em 2009, sentença de novembro do ano passado determinou que empresas da família Maluf com sede em Jersey devolvessem R$ 60 milhões aos cofres paulistanos. O dinheiro começou a voltar no mês passado.
Em ambos os casos, foram usadas as mesmas provas apresentadas pelo Ministério Público de São Paulo no processo da 4ª Vara da Fazenda Pública, iniciado em 2004.”
A emenda número 4 da Carta de direitos humanos dos EUA diz que o acusado tem direito a um julgamento rápido e público, por um júri imparcial (“In all criminal prosecutions, the accused shall enjoy the right to a speedy and public trial, by an impartial jury”).
Nossa Constituição, por sua vez, diz que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença.
A diferença pode parecer sútil, mas é enorme na prática. Enquanto na Constituição americana a ênfase está na publicidade e na rapidez do julgamento, a nossa está na inocência do acusado.
A escolha dos EUA não é única. O artigo 6o da Convenção Europeia sobre Direitos Humanos também enfatiza a importância de um julgamento ‘em tempo razoável (“everyone is entitled to a fair and public hearing within a reasonable time by an independent and impartial tribunal established by law”).
Essa diferença levanta alguns debates sobre as escolhas sociais e políticas brasileiras (escolhas essas que acabam refletidas em nossas leis e instituições).
Primeiro precisamos nos perguntar se a democracia de fato se beneficia de tamanha ênfase na necessidade do trânsito em julgado. Em outras palavras, por que não confiamos em nossos magistrados de primeira instância (ou mesmo de segunda instância)? Do mau preparo que nossos futuros juristas recebem nas universidades, da ênfase dada à memória e formalismo nos exames de seleção da magistratura, passando pela possibilidades de corrupção, achamos milhares de teorias. Outros apontam o problema justamente na outra ponta da corrente: é mais fácil influenciar politicamente magistrados nas instâncias superiores. Logo, é necessário manter o processo ‘aberto’ até que ele chegue a tais instâncias. Ou dizem que é mais fácil influenciar algumas poucas dezenas de magistrados nas altas cortes do que milhares de juízes espalhados geograficamente.
Mas, embora essas teorias possam até explicar as razões, elas não respondem a pergunta. O que enfraquece mais a democracia: a Justiça que corre o risco de errar ou a Justiça que parece não funcionar? E de fato a permissão de tantos recursos faz com que a decisão tenha mais qualidade? Julgar com rapidez significa julgar sem qualidade? E mesmo que respondamos afirmativamente a esse pergunta, a diferença de qualidade é tão significativa que ofusca o prejuízo causado pela percepção de que a Justiça não funciona?
Uma segunda questão de fundo é o que consideramos uma boa Justiça. A resposta óbvia é que ‘a boa Justiça é a Justiça eficiente’. Mas o que é ‘eficiência’? Qualidade é sem dúvida um indicador de eficiência, mas presteza também o é.
Nossas leis focam na questão da qualidade, o que pode dar a entender que, como sociedade, preferimos sacrificar rapidez em prol da qualidade. Mas se olharmos, por exemplo, os indicadores do CNJ, veremos que boa parte deles faz o oposto: são indicadores não de qualidade das decisões, mas de rapidez. Ou seja, a questão não é tão incontroversa como pode parecer, mesmo dentro do Judiciário.
Por fim, existe o debate sobre o que deve prevalecer: o interesse individual ou social? Óbvio que, sempre que possível, é importante que esses dois interesses não entrem em conflito, mas nem sempre isso é possível, e raramente isso ocorre em um julgamento criminal ou administrativo.
Para a sociedade, interessa ter a certeza se fulano é culpado ou não. Para o indivíduo interessa não ser condenado. Para a sociedade, é importante por um ponto final no assunto. Para o indivíduo, é importante que esse ponto final não seja com ele condenado. Nossas leis preferem o segundo em detrimento do primeiro.
Compare-se o sistema brasileiro com o americano ou inglês, por exemplo, onde tão logo um juiz de primeira instância decidiu que fulano é culpado, ele perde a presunção de inocência, e se vê como nossas leis dão prioridade ao interesse individual.
Mas as leis são criações de um coletivo, e não de um único indivíduo. Então precisamos nos perguntar como é que algo feito por um coletivo não prioriza os interesses da sociedade, mas do indivíduo.
Óbvio que não há – e possivelmente jamais haverá – uma resposta perfeita, mas deveríamos ponderar se, conscientemente ou não, ao formularmos as leis coletivamente, acabamos olhando apenas por nossos interesses individuais. Ou seja, se formulamos nossas leis não como uma sociedade, mas como um amontoado de indivíduos.