“Reino Unido pede à ONU ação contra Síria
O Reino Unido pediu ontem o aval do Conselho de Segurança da ONU para uma intervenção militar na Síria. Foi o passo mais concreto para uma ação contra o regime do ditador Bashar al-Assad, acusado de usar armas químicas contra a população de seu próprio país na semana passada.”
Intervenção nada mais é do que uma forma de guerra na qual duas partes já estão em confronto e uma terceira parte intervém a favor de uma das duas partes ou como parte neutra para separá-las.
Nas últimas duas décadas vários cientistas políticos e juristas passaram a desenvolver doutrinas que dizem que, embora a soberania do Estado seja fundamental nas relações internacionais, ela pode (e deve) ser desrespeitada quando for a intervenção para a proteção de direitos humanos dos habitantes daquele país tornar-se necessária. Assim como há a legítima defesa de terceiro em direito penal, há a intervenção humanitária em direito internacional público.
Tais teorias ganharam repercussão, mas não são novas. A ideia de invasões para libertar povos oprimidos sempre existiu e foi usada inúmeras vezes ao longo da história para ganhar apoio das populações locais ou evitar confronto com outros Estados que apoiavam o governo que sofre o ataque externo.
É o mesmo argumento usado no Iraque no início da década passada ou na ex-Iugoslávia na década de 1990.
Além disso, o que é uma intervenção legítima e o que é uma intervenção ilegítima, no fundo, é resultado do distanciamento histórico e alinhamentos ideológicos, quase sempre determinado pelo condicionamento cultural imposto pelo vencedor da guerra. As cruzadas (feitas para salvar as almas perdidas no Oriente Médio durante a Idade Média) é até hoje vista como algo legítimo por quem enviou seus cruzados, enquanto as populações muçulmanas que sofreram a invasão até hoje usam o termo ‘cruzados’ como algo negativo (o termo é frequentemente usado, por exemplo, nos discursos de membros do Talibã). O uso de bombas atômicas contra populações civis no Japão é bem menos controversa do que o uso de armas químicas contra populações civis na Primeira Guerra. É o que os historiadores se referem como 'a história dos vencedores'. Novamente, há pouca novidade nesse ponto.
Onde as coisas de fato mudaram nas últimas seis décadas é que a ONU (e especialmente seu Conselho de Segurança) passaram a funcionar como um instrumento de legalização das intervenções. As resoluções do Conselho de Segurança passaram a servir como base legal para justificar uma intervenção.
A ideia é que, através de tal legalização, legitimamos (tornamos moral) a intervenção.
O problema é que nem tudo que é legal é legítimo e nem tudo que é legítimo é legal. Pior: a existência de um não acarreta necessariamente o outro. Isso é comum em direito interno (pense nos debates entorno da eutanásia, pena de morte e aborto, por exemplo). Mas torna-se particularmente delicado em direito internacional porque a ONU representa Estados e não suas populações (basta lembrar que a Síria e a Coreia do Norte votam na ONU, mas isso não quer dizer que suas populações sejam representadas por tais votos). Além disso, nem todo Estado é Estado membro da ONU. A Fifa (sim, a do futebol) têm mais países membros (209) do que a ONU, por exemplo.
Se isso já não bastasse, o Conselho de Segurança não representa todos os países (há apenas 15 assentos para 193 países), e apenas cinco de seus membros (EUA, Rússia, China, Inglaterra e França) têm poder de veto, ou seja, de fato decidem. E esses cinco países não estão lá porque têm populações maiores (a Índia, por exemplo, tem população maior do que quatro dos cinco membros somados), ou são melhores democracias (os países nórdicos são democracias mais estabelecidas do que todos os membros permanentes). Estão lá porque lideraram o lado vitorioso da Segunda Guerra Mundial e desenvolveram armas nucleares antes de outras nações. Logo, uma resolução que autorize uma intervenção não confere automaticamente legitimidade a tal intervenção. Ao menos não do ponto de vista democrático (um ser humano, um voto).
Tampouco a falta de uma resolução retira tal legitimidade.
O que ela faz é evitar uma potencial escalada do conflito. Ao conseguir o apoio (ou ao evitar a oposição) dos cincos países com assento permanente, evita-se que esses países – que são aqueles com maior capacidade militar, que realmente têm poder de guerrear em qualquer lugar do planeta, e que têm maior influência econômica e militar sobre outros países – sejam contrariados, evitando, assim que esses cinco se encontrem em lados opostos em uma mesma guerra.
Nesse aspecto, a única legitimidade conferida por uma resolução da ONU é em relação à imoralidade de uma terceira guerra de escala global cujas consequências ninguém pode prever. Mas isso não torna uma guerra mais ou menos moral: apenas menos arriscada.