“O ‘mistério’ dos cadeados que apareciam da noite para o dia trancando portas e portões de moradores em Cravinhos (a 292 km de São Paulo) foi desvendado.
Na manhã de ontem, um suspeito confessou à polícia ser o autor das ‘brincadeiras’ (…)
Os cadeados apareceram nas casas de Cravinhos no início do mês passado. Moradores tentavam sair de casa pela manhã e percebiam que o portão estava trancado -não havia chave para abrir.
Foram ao menos oito casos relatados. Só uma pessoa registrou queixa na polícia.
O delegado disse que o suspeito será submetido a um exame psiquiátrico - se o laudo confirmar o quadro clínico, ele passa a ter identidade protegida pela lei, por ser inimputável (não responder por suas ações).
A polícia chegou ao suspeito após investigar a relação entre as vítimas, que, segundo o delegado, o conheciam e moravam no entorno da praça central da cidade.
‘Ele disse que as vítimas eram pessoas com as quais ele tinha amizade e que tudo não passou de uma brincadeira’, afirmou Costa (…)
De acordo com a polícia, a ‘brincadeira’ é contravenção penal e pode ser enquadrada no enunciado do artigo 42, que trata de perturbação do sossego, com punição de 15 dias a três meses de detenção - que pode ser revertida em prestação de serviços à comunidade”.
Essa matéria serve para ilustrar dois assuntos diferentes:
Primeiro, a polícia prendeu o suspeito com base no artigo 42 da Lei das Contravenções Penais. Diz o artigo que é contravenção penal:
"Perturbar (...) o trabalho ou o sossego alheios:
I – com gritaria ou algazarra;
II – exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais;
III – abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos;
IV – provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda"
Reparem que o tal artigo só fala em perturbações sonoras (gritos, ruídos, sinais acústicos, barulho). Não fala de perturbar a vida da pessoa em geral. Trancar as pessoas dentro de casa, ainda que por brincadeira, é uma importunação ao sossego no sentido laico da palavra, mas não satisfaz a descrição do delito feita pelo artigo 42, por isso não é possível punir a pessoa por esse crime. A lei simplesmente não faz uma lista de quais os sons constituem a perturbação porque essa lista seria infinita, mas deixa claro que é só som. Ela deixa a cargo do magistrado definir se um som é ou não perturbador (ou seja, se o barulho é suficiente para tirar alguém ‘do sério’. Se for, é uma importunação ao sossego.
No caso da matéria acima, poderia ser o delito descrito no artigo 41 da mesma lei: "praticar qualquer ato capaz de produzir pânico ou tumulto". Afinal, trancar pessoas dentro de suas próprias casas certamente vai gerar algum tumulto. Também poderia ser um segundo delito, ainda mais grave: cárcere privado. Se quem trancou, trancou a única saída da casa, quem estava dentro não conseguiria sair. Prender ilegalmente alguém é crime de cárcere privado. Não importa se o cárcere acontece na própria casa da vítima.
Segundo, a intenção de fazer uma brincadeira não é, necessariamente, uma desculpa. O dolo acontece quando a pessoa quer ou assume o risco. Em uma brincadeira de mau gosto, a pessoa pode estar assumindo o risco de cometer um delito. Alguém que aponta a arma carregada para a vítima pode estar apenas querendo ‘brincar’, mas está, ao mesmo tempo, assumindo um risco: o de matar a vítima. Logo, alegar que era uma brincadeira não faz com que a ação deixe de ser delituosa (embora possa, sim, levar à diminuição da pena-base, da qual em breve falaremos aqui).