“Ex-senador forneceu à PF endereço que não existe
Qualquer fotógrafo de celebridades sabe que o ex-senador Gilberto Miranda mora na rua Alemanha, no Jardim Europa, um dos pontos mais caros da zona sul de São Paulo.
Para a polícia e para os registros de empresas, porém, Miranda informa que não tem domicílio no Brasil, mas sim em Barcelona, na Espanha. Levantamento feito pela Folha no registro de imóveis daquela cidade e no local mostram que o apartamento em que ele diz morar não existe.
Miranda, denunciado na Operação Porto Seguro sob acusação de participar de esquema de compra de pareceres em órgãos do governo federal, disse à Polícia Federal e à Junta Comercial de São Paulo que mora na calle Pujades, 235, terceiro andar, quarta casa, em Barcelona.
O número 235 da calle Pujades só tem dois andares e um apartamento por andar, e não quatro, como o endereço que ele forneceu sugere (...)
Miranda é cidadão espanhol desde 2008.
Fornecer um endereço inexistente à PF e à Justiça pode, em tese, caracterizar o crime de falsidade ideológica.
Três criminalistas ouvidos pela Folha dizem que a prática é uma das formas de tentar atrasar os processos.
Como tem cidadania estrangeira, Miranda pode alegar que deve ser interrogado por carta rogatória enviada a um juiz daquele país. Um endereço fictício levaria o juiz a não conseguir cumprir o pedido brasileiro”
O personagem na matéria acima deve ser citado e intimado na Espanha não porque ele tem cidadania espanhola, mas porque ele reside - segundo ele - na Espanha. Se fosse por causa da nacionalidade, um estrangeiro que trabalhe no Brasil teria de ser citado e intimado em seu país de origem, ainda que ele não tenha residência lá.
Mas a coisa se complica porque, segundo a matéria, o endereço não existe.
Seres humanos erram e isso é compreensível. Alguns esquecem o aniversário de casamento e outros, aparentemente, onde moram.
Mas erros em informações dadas à Justiça são mais delicados. Isso porque quem presta a informação tem a obrigação de não fazer a Justiça perder tempo. A Justiça pode relevar erros, mas não quando há a intenção ou se assume o risco de agir ilegalmente.
Ninguém é obrigado a constituir prova contra si mesmo e qualquer réu pode usar os mecanismos processuais para atrasar o processo. Essas são regras da lei, ainda que a prática possa ser imoral.
O que não se pode fazer é usar mecanismos fora das regras do jogo jurídico para perturbar a administração da Justiça. Por exemplo, o réu não pode matar a testemunha ou por fogo no processo. Isso está fora das regras do jogo jurídico.
Talvez uma analogia ajude: o processo funciona como um rio no qual o barco (as pessoas envolvidas no processo) tem uma certa margem de manobra entre as margens. Ele pode navegar perto de uma das margens, no meio do rio, ou se movimentar de um lado para outro. O comandante do barco pode fazer o que quiser, desde que fique dentro das margens do rio. Mas ele não pode contrariar as regras impostas. Por exemplo, não pode navegar na areia da praia.
Se a Justiça não sabe onde encontrar o réu, o processo não segue seu curso normal. O barco sai do rio.
Daí o problema de um réu declarar um endereço falso com o intuito de atrapalhar o processo. Ele não está apenas agindo de má fé, mas está tentando descarrilhar o processo e fazer com que a Justiça perca seu tempo.
Quem declara um endereço falso pode estar cometendo falsidade ideológica, pois a pessoa está adulterando um documento público (o processo) com a finalidade de prejudicar um direito ou alterar a verdade de um fato juridicamente relevante. A pena pode chegar a 5 anos.
(Dependendo do que realmente ocorreu, pode ser também fraude processual, na qual alguém altera a situação ou condição de um lugar, coisa ou pessoa com o fim de induzir o magistrado a erro. Se isso ocorre em um processo penal, a pena pode chegar a até 4 anos de reclusão).
E quem será o réu desse novo processo?
O réu que forneceu um endereço errado para atrapalhar a Justiça certamente pode ser réu nesse novo processo. Mas e se ele fez isso por recomendação de seu advogado?
Um advogado pode e deve proteger os interesses do cliente acima até de seus próprios interesses (por exemplo, ele não pode divulgar os segredos do cliente, mesmo que brigue com o cliente ou este deixe de pagá-lo). Mas não pode proteger seu cliente a qualquer custo. Ele não pode passar dos limites da legalidade. Se passar, ele está cometendo um crime e pode ser processado por isso. É o que acontece com o advogado que diz ao cliente que ele deve matar as testemunha do caso ou atear fogo no fórum.
Mas as comunicações entre advogado e cliente são sigilosas. Como se prova que um advogado sugeriu ao cliente que ele cometesse um crime?
A forma mais comum de isso acontecer é bem simples: o próprio cliente compromete seu advogado, intencionalmente ou não. O advogado não pode romper sua obrigação de manter sigilo em relação a seu cliente, mas nada impede o cliente contar ao mundo o que seu advogado lhe disse. O sigilo entre advogado e cliente serve para proteger o cliente, não o advogado.