“Clandestino diz ter sido torturado em navio e jogado ao mar
Quando embarcou clandestinamente em um navio no porto de Camarões, há cerca de um mês, o soldador industrial desempregado Ondobo Rap Wilfred, 28, pretendia chegar à Europa. Acabou à deriva, a 15 quilômetros da costa brasileira.
Wilfred foi resgatado no dia 28 de junho por um navio que ia para o porto de Paranaguá (PR). Disse ter sido espancado e torturado por 11 dias pela tripulação e obrigado a descer do navio por uma corda, para boiar sobre um pallet (placa de madeira usada no transporte de cargas) (…)
A tripulação do navio Seref Kuru, que está impedida de sair de Paranaguá, negou conhecer Wilfred e não fala sobre o caso nem à polícia (…)
Em 28 de junho, quando o navio se aproximava da costa brasileira, deram-lhe uma lanterna e 150 euros e o obrigaram-no a descer do navio.
Ficou 11 horas à deriva até ser resgatado. Apesar da desidratação, não precisou ser internado. Wilfred, que está sob os cuidados da agência marítima responsável pelo navio, deve ficar no Brasil durante a investigação”
Óbvio que quem abandona alguém no meio do oceano pode ser acusado de tentado matá-lo, o que seria tentativa de homicídio.
Só que quando o suposto criminoso dá dinheiro e uma lanterna para a suposta vítima, e a coloca em uma balsa, ele está dando indícios de que não espera que a pessoa vá morrer (ainda que saiba que existe tal risco).
Se o agente não espera que a vítima morra, ele teria agido culposamente porque não assumiu o risco da morte (a chamada culpa consciente) ou, no máximo, teria assumido o risco, mas não desejado o resultado (o chamado dolo eventual).
No caso da culpa consciente – quando previu o risco, mas não o assumiu – não existe crime tentado. Tentativa só existe na caso de dolo. Logo, não é possível uma acusação por tentativa de homicídio.
Já no caso do dolo eventual , existe um debate entre juristas. Em teoria, você só pode ter tentado fazer alguma coisa se você tentou alcançar algum resultado (o que, em direito, é chamado de dolo direto). Pense nisso: é impossível você ter falhado em sua tentativa de alcançar determinado resultado se você nunca teve o objetivo de alcançá-lo. No dolo eventual você não se importa se o resultado será produzido ou não. Logo, você não tem a intenção de gerá-lo e, por consequência, não é possível que você estivesse tentado alcançar tal resultado.
Mas há alguns (poucos) juristas que dizem que é possível tentativa no caso de dolo eventual porque, para a lei penal, todos os dolos são iguais, não importando se é direto ou eventual.
De qualquer forma, ainda que a tentativa de homicídio não seja possível, outros crimes podem ter ocorrido, como a exposição da vida de outrem a perigo direto e iminente (art. 132 de nosso Código Penal).
Mas existe um segundo complicador na matéria acima: quem tortura e atira um clandestino ao mar pode estar praticando um ato de pirataria. Não no sentido de copiar música ilegalmente, mas no sentido do bom e velho pirata da perna de pau e cara de mau.
O art.101(a)(ii) da Unclos (United Nations Convention on the Law of the Sea), que é um tratado do qual o Brasil é parte, define como ato de pirataria “any illegal acts of violence or detention (...) committed for private ends by the crew or the passengers of a private ship (…) and directed (…) against (…) persons or property in a place outside the jurisdiction of any State” [quaisquer atos ilegais de violência ou retenção cometido com finalidade privada por tripulantes ou passageiros de um navio privado e dirigido contra pessoas ou propriedade em local fora da jurisdição de qualquer Estado].
Não há dúvida que o ato é ilegal de violência e foi cometido contra uma pessoa. O problema passa a ser se foi fora da jurisdição de qualquer Estado.
No nosso planeta, só há dois lugares que estão fora da jurisdição de qualquer país: Antártida e os oceanos, excluídos o mar territorial de cada país. O mar territorial é de até 12 milhas náuticas, o que dá 22,22km. Logo, será ato de pirataria de acordo com o art. 101(a)(ii) se o crime aconteceu fora desses 22km.
A matéria diz que a vítima foi encontrada a 15km da costa brasileira. Mas onde ela foi encontrada não importa para determinar se é um ato de pirataria. O que importa é onde o ato aconteceu. Por isso, as investigações terão que determinar o quanto a vítima derivou no mar entre o momento em que foi abandonada e o momento em que foi achada.