“Juiz do Rio compara funk 'proibidão' a versos censurados de Chico Buarque
Os versos exaltam brigas entre traficantes rivais, incentivam o consumo de drogas, sexo com menores e mortes de políciais.
Para a polícia, trata-se de apologia ao crime organizado. Já o juiz Marcos Augusto Peixoto, da 37ª Vara Criminal do Rio, classificou os funks chamados de "proibidões" como manifestação artística.
A avaliação do magistrado está registrada em decisão, públicada na segunda (6), que rejeitou denúncia de apologia ao tráfico apresentada pelo Ministério Público.
O acusado era Paulo Martins de Oliveira, 26, detido por PMs na comunidade Chapéu Mangueira, zona sul do Rio, em maio de 2013.
Na ocasião, Oliveira escutava os proibidões em praça pública com amigos. Ao confirmar que era dele o pendrive com os proibidões, foi encaminhado para a delegacia (…)
‘Sem dúvida alguma os proibidões são uma forma de arte. Trata-se de expressão cultural, que deve ser respeitada e debatida, gostemos ou não’, disse o juiz à Folha (…)
O Comando de Polícia Pacificadora disse, em nota, que irá continuar com as prisões contra quem escutar proibidões em público. ‘Enquanto apologia ao tráfico for considerada crime previsto em lei, a Polícia Militar irá cumprir com seu papel’, diz a nota”
Há dois debates no caso acima.
O primeiro é o debate sobre o que é arte. Se arte é toda forma de expressão, o bocejo do motorista, o beijo no filho, o soco na cara e o grito no hospital são formas de arte tanto quanto um quadro de Picasso. Se arte é toda forma de expressão consciente, o beijo no filho e o soco na cara continuam sendo uma forma de arte.
Se arte é a expressão ou aplicação da criatividade ou imaginação, a sentença do magistrado, o discurso do político, os slides do executivo ou a planilha do contador são arte.
Se arte é toda forma de expressão daquilo que é belo, caímos no debate sobre o que é beleza. Pintores impressionistas por anos tiveram seus quadros considerados ‘meras impressões’ (daí o nome do movimento) aos quais faltavam talento e beleza. Hoje são os quadros mais caros do mundo.
Gosto ou desgosto é questão cultural, histórica e pessoal. Melhor não discutir.
Enfim, definir o que é e o que não é arte é algo melhor feito por filósofos do que por juristas.
O segundo debate é se de fato importa para a lei penal se o funk proibidão é uma obra prima músical ou uma forma de protesto ou barulho horripilante.
Os arts. 286 e 287 do Código Penal dizem que é crime “incitar, publicamente, a prática de crime” e “fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime”. O art. 33, §2o, da lei 11.343/06 diz que é crime “induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga”.
Mas ouvir uma música que fala de traficantes que se opõem à polícia é o mesmo que incitar ou instigar alguém a cometer um crime ou mesmo uma forma de apologia (enaltecimento) ao crime? E se ela falar de pessoas que usam drogas?
Quem ouve Faroeste Caboclo está cometendo crime? João de Santo Cristo só pensava em ser bandido desde crianca, roubava dinheiro da igreja (e praticou ao menos mais uma tentativa de roubo em Brasilia), estuprava menores, era traficante, matou todos os demais traficantes da cidade, portou arma ilegalmente e praticou duelo armado com outro traficante. Em poucas estrófes, o herói que não tinha medo da polícia, capitão ou general, comete ao menos meia dúzia de crimes graves.
E se o mesmo acusado estivesse assistindo Bonny & Clyde ou Pulp Fiction ou Velozes e Furiosos ou Cães de Aluguel ou Cidade de Deus ou Butch Cassidy e Sundance Kid na mesma praça pública? Tais filmes retratam de forma positiva criminosos, condutas criminosas e o consumo de drogas.
E se o mesmo acusado estivesse lendo Os Miseráveis, a obra-prima de Victor Hugo onde todos os heróis são criminosos e o polícial é o anti-herói?
Acessar informação (para não precisarmos sequer debater o que é arte, mas sabendo que toda arte é uma informação) é um direito básico em toda democracia. Não cabe à lei decidir se alguém ouve, lê ou assiste algo com finalidade educacional, entretenimento ou mera curiosidade.
Vale lembrar que acessar informação não é o mesmo que produzir tal informação. O acesso à informação – desde que ela não seja privada, particular ou não esteja sob sigilo – é garantido de forma quase universal em democracias. Mas mesmo quem produz a informação é normalmente protegido pela lei através da liberdade de expressão ou jornalística. Por isso expressões de protesto – sejam elas belas ou não, o que quer que isso de fato signifique – não são consideradas incitação ou instigação ao crime pela lei penal.