“No dia do crime, os defensores do acusado já tinham solicitado a libertação dele, mas um juiz que estava de plantão negou o pedido.
A polícia disse que Carvalho e Caleman discutiram dentro do bar Sr. Pitanga, no Itaim Bibi (zona oeste), por conta de uma mulher. Amigos da vítima contestaram a informação e disseram que a discussão ocorreu por causa de um esbarrão. Para a família de Caleman, ele foi vítima de uma agressão gratuita.
À polícia, no dia do crime, Carvalho admitiu a briga e afirmou que agiu em legítima defesa. Ele alegou que estava do lado de fora do bar fumando quando alguém o agarrou pelos cabelos e o sacudiu. Ao tentar se defender, atingiu Caleman com o copo.
Um de seus defensores, o advogado Luciano Santoro, afirmou que o caso foi uma fatalidade. Segundo ele, o crime não foi doloso (intencional), pois o rapaz foi se defender de uma agressão e acabou atingindo Caleman com o copo.
‘Ele tem de responder pela morte, mas em liberdade. Antes da decisão é preciso fazer uma investigação mais aprofundada para saber se foi uma lesão corporal, homicídio culposo [sem intenção] ou legítima defesa’, disse”.
Já usamos a primeira parte dessa matéria para falar de prisão preventiva. Hoje vamos usar a segunda parte para falar de um assunto completamente diferente.
Reparem que o advogado primeiro sugere que tenha sido uma fatalidade. E depois ele diz que pode ter sido um homicídio culposo e, por fim, que pode ter sido uma legítima defesa. Essas três coisas são completamente antagônicas. Não pode ter sido mais de uma ao mesmo tempo. Vejamos:
Uma fatalidade é aquilo que aconteceu sem poder ser previsto e contra a vontade da vítima, que vinha agindo como os cuidados esperados de uma pessoa normal. Uma fatalidade é quando alguém, dirigindo com todo o cuidado e prudência, atropela e mata uma criança que saiu correndo no meio da estrada de repente. O motorista não queria matar a criança e estava tomando todos os cuidados que uma pessoa normal e prudente deveria tomar para não atropelar ninguém, mas acabou atropelando. Como é que ele poderia ter previsto que uma criança sairia correndo no meio da estrada? Por mais que tomemos todos os cuidados do mundo, às vezes tragédias ocorrem que não podem ser imputadas a ninguém, ou apenas à própria vítima. Em um caso como esse, por mais triste que seja, não há crime.
Já um homicídio culposo é aquele crime (sim, aqui há um crime) no qual o réu mata a vítima sem querer e sem assumir o risco de matá-la. Ele mata porque agiu de uma forma imprudente ou negligente, ou porque não tinha a perícia necessária para fazer o que quer que estivesse fazendo. Esse é o caso, por exemplo, da mãe que dá marcha a ré no carro sem olhar pelo retrovisor e, sem querer, atropela e mata o filho que estava brincando atrás do carro. Ela agiu de forma imprudente. Qualquer pessoa normal olha o retrovisor antes de dar marcha ré no carro. Ela não o fez. Outro exemplo é a mãe que esquece o filho dentro do carro no estacionamento do shopping e ele morre desidratado. Óbvio que ela não queria matá-lo, mas ela deixou de tomar os cuidados que uma pessoa normal deveria tomar e, em consequência, acabou matando alguém de quem deveria tomar conta/proteger. Por isso, ela agiu negligentemente. O contrário da culpa é o dolo, e é aí que entra a legítima defesa.
O dolo ocorre quando alguém quer ou assume o risco de causar um resultado. Alguém que dirige a 100km por hora na Avenida Paulista pode até não estar querendo matar alguém, mas com certeza está assumindo o risco de fazê-lo. Logo, se matar alguém, terá agido de forma dolosa. Os crimes dolosos, são muito mais graves que os crimes culposos porque no dolo há vontade do agente, na culpa, apenas o descuido.
A legítima defesa é o que chamamos de excludente de ilicitude. Excludente de ilicitude (ou de antijuridicidade) é uma razão pela qual a conduta do réu deixa de ser considerada criminosa devido às circunstâncias que o levaram a agir. Se o motorista no semáfaro da Avenida Paulista acelera seu carro atropela e mata um pedestre que atravessava a rua, o motorista quis (ou assumiu o risco de) matar o pedestre. Logo, ele cometeu um homicídio doloso. Mas se alguém aponta uma arma contra o motorista e este acelera seu carro, atropela e mata o criminoso armado, o motorista terá agido em legítima defesa, ou seja, para proteger sua própria vida ele tirou a vida de alguém.
Quem age em legítima defesa não está cometendo um crime (sua ação deixa de ser considerada ilícita devido às circunstâncias que o levaram a agir daquela forma). Mas repare que ele desejou (ou assumiu o risco de) matar. Ao contrário do homicídio culposo, em que a pessoa não teve a intenção de matar, na legítima defesa a pessoa matou querendo. Mas ela não será apenada porque, ainda que tenha desejado matar, ela o fez para proteger sua própria vida. Em suma, não é possível alguém dizer que agiu, ao mesmo tempo, culposa e dolosamente. Ou a pessoa matou sem querer ou quis matar para se defender.