“Um bebê morreu após ter sido ferido por um bisturi na hora do parto, anteontem de manhã, no hospital municipal do Campo Limpo (zona sul de São Paulo).O bebê, que nasceu vivo, tinha um corte e hematomas nas costas. O hospital afirma que o corte foi superficial.O caso está sendo investigado pelo 37º DP (Campo Limpo) e pelo hospital. Apuram se houve erro médico.
No boletim de ocorrência, o médico responsável pelo parto disse que houve complicações e que o corte foi resultado da incisão feita na barriga da mãe.
Só se saberá se o corte foi a causa da morte depois que os exames do IML (Instituto Médico Legal) ficarem prontos.(…)
A polícia suspeita de tentativa de encobrir o caso - com adulteração de documentos e encaminhamento supostamente errado do corpo.Segundo a polícia, a guia de encaminhamento de cadáver direcionava o corpo ao SVO (Serviço de Verificação de Óbitos), e não ao IML, como deve ocorrer em mortes com sinais de violência.Além disso, o documento estava rasurado no campo ‘tempo de gestação’.A guia assinalava que a jovem tinha 31 semanas de gravidez. A via de entrada no hospital registrava 26. Segundo o delegado Carlos Alberto Delaye, o objetivo era mostrar que, sendo mais velho, o bebê não morreria por causa do corte.Especialistas ouvidos pela reportagem disseram que um corte poderia matar tanto um bebê na 26ª quanto na 31ª semana de gestação (…)
A direção do hospital disse que Veloso é formado há 27 anos e trabalha há 20 anos na rede municipal. (…).
A mãe do bebê é uma estudante de 14 anos. Ela está hospitalizada, mas não corre risco. O pai tem 22 anos.
A jovem foi levada ao hospital em trabalho de parto. A gravidez era considerada de risco devido à pouca idade e ao curto tempo de gestação - sexto ou sétimo mês.
O hospital, segundo médicos ouvidos pela Folha, é aparelhado para realizar partos de alto risco. (...)
‘Foi uma cesariana delicada porque [com esse tempo] o útero não estava preparado para o parto. Ela é tecnicamente mais difícil’, explicou o diretor do hospital. (…)‘Isso dificulta o acesso do médico à parte interna do útero para a extração do bebê’, afirmou. (…)‘
O bebê nasceu vivo. Foram feitas várias manobras, ele chegou a ser reanimado, mas no final não resistiu’, explicou ontem Gusmão.”
Esse caso é interessante para vermos várias coisas distintas.
Primeiro, reparem que o bebê nasceu. Se nasceu com vida (inalou ar), não se trata- de aborto. Aborto só ocorre antes do nascimento com vida. Depois disso, se morreu, pode ser homicídio, mas não aborto. O homicídio independente da idade da vítima.
Segundo, como a matéria explica, não dá pra saber se houve homicídio ou não antes do fim do processo. Se houve adulteração de provas (as rasuras nas guias, referidas na matéria), esse é um outro crime, mas não faz ou deixa de fazer que o homicídio tenha ocorrido. Até o fim do processo, as opiniões da polícia são apenas isso: opiniões sem todas as informações necessárias. Pitacos.
Terceiro, se houve crime, ele será um homicídio culposo. Erro médico não é nome de crime.
Por fim, e mais importante, ainda que o médico seja responsável pela morte, pode não ter cometido um crime. Isso porque, para haver homicídio culposo, o médico precisará ter agido com imperícia, imprudência ou negligência. No caso da matéria acima, o magistrado terá de decidir se o médico falhou na técnica que deveria dominar. Ou seja, se ele foi imperito. Se ele foi imperito, ele terá cometido o crime de homicídio culposo. Se não foi imperito, o que ocorreu foi apenas um acidente trágico e ninguém será culpado pela morte do recém-nascido.
É interessante notar que, segundo a matéria, o hospital divulgou nota dizendo que o médico tem 27 anos de experiência. Ao contrário do que dá a impressão, o tempo de experiência pode funcionar contra o médico. Se o que o magistrado levará em conta para julgar se houve homicídio culposo é se o médico cometeu um erro durante o uso de uma técnica que deveria dominar, quanto mais tempo de experiência, maior será a expectativa de que domine tal técnica. Em outras palavras, um tempo de experiência maior pode fazer com que a defesa do médico se torne mais difícil pois fica mais complicado explicar porque ele não conseguiu evitar o erro, se houver de fato cometido um erro.