“Os românticos do crack
Após muita expectativa, revelou-se um tanto quanto tímido o tal programa de internações à força na cracolândia promovido por Alckmin. Temendo ser tachado de ‘higienista’, o governo paulista tem se restringido aos casos em que familiares pedem providências. Os que não têm essa sorte, de modo geral, continuam largados na rua (...)
ONGs e afins alegam que os usuários do crack têm o direito de recusar atendimento. Dizem que só devem ser internados aqueles que assim desejarem. Mas será mesmo que os 'noias' que perambulam pela cracolândia como 'zumbis' têm condição de cuidar da própria vida? A dependência à droga não se tornou mais forte do que o medo de morrer?”
Pela lei, uma pessoa pode ser internada contra sua vontade. Na verdade, a internação forçada pode acontecer de duas formas: involuntariamente (quando algum parente do doente mental a requisita) ou compulsoriamente (quando o magistrado é quem determina). Em ambos os casos, o paciente primeiro passa por uma avaliação médica.
O magistrado, ao enviar o doente mental para o tratamento compulsório, está declarando que fulano é doente mental. Mas óbvio que ele não tem capacidade técnica para fazer a análise sobre a doença mental em si. Quem faz a análise é um médico. O magistrado apenas concorda com a análise médica.
Para nossa lei, loucos, crianças e outros incapazes não têm capacidade de decidir o que querem. Decisões sobre o que é melhor para eles são tomadas por seus guardiões legais (normalmente familiares) ou pelo Judiciário. Os viciados ficam em um meio termo, no qual são relativamente incapazes. Mas se o vício gerar a incapacidade de exprimirem sua vontade, eles passam a serem tratados como incapazes.
Há dois problemas que complicam o debate. O primeiro é saber se o viciado é doente mental ou está impossibilitado de exprimir sua vontade. Alguns casos - os extremos - são óbvios, tanto de sanidade quanto de insanidade. O problema está nos que não estão em nenhum dos extremos. Que sofrem de um vício, não há dúvida; mas esse vício é uma doença mental ou os impedem de expressarem suas vontades? Pense no alcoólatra, no obeso, ou em quem gasta fortunas em cremes de beleza ou sapatos. Todos são comportamentos compulsivos e às vezes de dependência, mas isso justificaria sua internação? Eles ainda conseguem expressar suas vontades.
Sim, drogas são proibidas, e chocolate ou sapato, não. Mas a internação não é porque o viciado está consumindo algo proibido (ela não é uma pena), mas apenas uma medida de tratamento porque seu comportamento compulsivo e sua dependência evidenciam sua doença mental. Poderíamos internar o obeso mórbido, então? Afinal, ele consegue expressar sua vontade, mas não consegue controlá-la. A lei não é clara.
O debate é importante porque se fulano, embora viciado, não for doente mental, a lei que autoriza a internação involuntária ou compulsória do doente mental não pode ser aplicada a ele.
O segundo problema surge porque, no Brasil, ninguém é obrigado a submeter-se a tratamento médico contra sua vontade. Mas essa regra exclui os incapazes. Daí porque a criança não tem direito de escolher não tomar vacina e o doente mental pode ser internado contra sua vontade.
Muitas das doenças mentais não têm caráter permanente e outras tantas são permanentes, mas se exteriorizam apenas durante surtos. Imaginemos que, depois de internado, o paciente recupere sua sobriedade e diga ‘quero sair’. Teremos uma pessoa que era doente mental ao dar entrada na instituição, mas que talvez já não é doente, ou ainda é mas não está sofrendo as consequências de sua doença.
Ela tem o direito de sair? E se o médico disser que ela não está curada? Temos o médico e o paciente em lados opostos. Como vimos, se alguém capaz não quer se submeter a tratamento, ele não é obrigado, mas quem declarou que ele não era capaz é justamente o médico que agora quer mantê-lo em tratamento.
E aí aparece uma outra questão que a lei não responde: afinal, o tratamento é para fazer com que ele pare de usar a droga, para retomá-lo à sanidade ou para curá-lo da tendência de viciar-se? Isso é importante porque não podemos saber quando o tratamento alcançou seu objetivo se não sabemos qual o objetivo do tratamento. Pense no alcoólatra. Ele jamais deixará de ser alcoólatra, mas isso não quer dizer que ele não consiga parar de beber.
Para complicar, infelizmente, exames psiquiátricos e psicológicos não têm a mesma acuidade científica que outros exames médicos. Ou você está grávida ou não está. Ou tem câncer ou não tem. Mas várias das doenças mentais são medidas em gradações. E quase sempre baseadas em questionários respondidos pelo paciente. E isso gera um elemento de subjetividade.