“De novo, motorista bebe e mata no trânsito
Um caminhoneiro atropela e mata cinco pessoas em Ribeirão Preto. Em São Paulo, um projetista derruba uma motociclista no cruzamento. Em comum, os dois motoristas admitiram ter bebido antes de dirigir.
Marcos Aurélio Quintino Camilo, 42, dirigia um caminhão com bobinas de aço, quando invadiu a área de uma obra às 9h. Cerca de 20 trabalhadores estavam no local, que era isolado por cones.
Desesperados, eles correram para o mato. Seis não conseguiram e só um deles sobreviveu: Luciano Nunes Costa, 38, que está internado em estado grave.
O caminhoneiro disse à polícia que havia tomado oito rebites (anfetamina para evitar dormir) e cachaça. Também contou que estava havia 20 horas sem dormir. Na versão dele, o acidente foi causado por uma falha nos freios. Preso em flagrante, ele foi indiciado sob acusação de homicídio doloso (quando assume o risco de matar). ‘Ele sabia do perigo a que se submeteu’, disse o delegado Carlos Henrique Garcia.
O outro caso, no Campo Belo, zona sul de São Paulo, um projetista angolano foi preso na noite de anteontem após bater na motocicleta pilotada pela personal trainer Luci Mary Soares Rivelli.
Gravação feita momentos depois do acidente mostra o angolano Miguel Angelo de Lopes Morais, 42, bastante alterado. Perguntado se havia bebido, o motorista responde: ‘algumas’”
O delegado diz que o caminhoneiro assumiu o risco de matar ao dirigir bêbado e que, por isso, ao matar alguém, ele cometeu um homicídio doloso, que é quando a pessoa quer matar ou assume o risco de matar. Quando a pessoa assume o risco de cometer o crime, ela está cometendo o que se chama de dolo eventual (‘eu não quero cometer o crime, mas eu não estou nem aí se ele ocorrer’)
É assim que a justiça brasileira tem interpretado os casos de homicídios causados por pessoas bêbadas ou drogadas. Mas não foi sempre assim. Durante décadas, ela condenava essas pessoas por homicídio culposo (menos grave) porque, segundo ela, quem estava bêbado não tinha como saber o que queria ou deixava de querer, ou o risco que estava assumindo. Como disse, esse entendimento caiu nos últimos anos.
Há poucas semanas, contudo, uma decisão foi noticiada em vários jornais dizendo que o STF estava ordenando a desclassificação (a mudança) desses tipos de crimes de doloso para culposo. Ele fez isso baseado em algo que os estudantes de direito acham muito difícil de entender, mas que na verdade é bem simples; a culpa consciente.
Culpa (crime culposo) ocorre quando a pessoa não quer cometer o crime, mas o acaba o cometendo porque é imprudente negligente ou imperita. A culpa consciente ocorre quando a pessoa sabe que há um risco, mas acha que esse risco não vai se materializar porque ela é muito boa no que faz ou por qualquer outro motivo. Algo como ‘eu sei que é perigoso, mas eu sou tão bom que nada vai acontecer’.
Pois bem, o que o ministro do STF fez naquele habeas corpus foi dizer que quando a pessoa bebe e mata alguém ela não está dizendo ‘eu sei que é perigoso beber e dirigir e que eu posso acabar matando alguém, mas se eu matar alguém, que se dane’ (dolo eventual), mas sim ‘eu sei que é perigoso beber e dirigir e que eu posso acabar matando alguém, mas eu sou tão bom de direção que nada vai acontecer, ainda que eu esteja bêbado’ (culpa consciente).
Em outras palavras, o que o STF disse é que para alguém ser culpado de um homicídio doloso depois de beber, a promotoria terá de provar que ele não só previu o risco de matar, mas que ele também aceitou o risco de matar. Se isso não ficar provado, será homicídio culposo e como as penas são muito menores, a pessoa provavelmente sequer será presa se for condenada.
Essa, por enquanto, é uma decisão isolada do STF e ainda não dá para saber se o STF está voltando aos tempos em que beber, atropelar e matar alguém era visto como um crime leve, ou se esse foi um caso esporádico. De qualquer forma, o caso é interessante para ressaltar a importância de fazermos leis claras. Se a lei dissesse claramente que ‘matar alguém depois de beber é um homicídio doloso punido com tantos anos de prisão’, não haveria dúvida. Mas o que o legislador fez no artigo 302 do Código de Trânsito, que é onde o assunto é tratado, foi uma bagunça. Primeiro, ele não disse nada (de 1997 a 2006). Depois (de 2006 a 2008), ele disse era crime culposo. E depois disso (desde 2008) ele apagou a referencia ao crime culposo, mas não disse que é doloso. Assim, os juízes podem interpretar a remoção da referencia ao crime culposo tanto como dizendo que é crime doloso, quanto que o Congresso quis deixar a cargo dos juízes decidirem cada caso como bem entenderem.