“Justiça veta parada gay em Moscou por 100 anos
O Tribunal Municipal de Moscou, a capital da Rússia, confirmou uma decisão da Câmara Municipal que proíbe a realização de paradas gays na cidade pelos próximos cem anos - até 2112 (...)
Segundo Nikolai Alexeyev, líder de uma organização russa pelos direitos dos homossexuais, o veto foi resposta a um pedido formal de autorização para 102 paradas gays em Moscou entre 2012 e 2112 (…)
Os ativistas agora devem recorrer ao Tribunal de Direitos Humanos de Estrasburgo (França)”.
Algo soou estranho na matéria acima? Se não, relei-a com atenção.
Reparem que os ativistas vão recorrer da decisão Justiça russa, sobre uma atividade feita na Rússia, em um processo movido por russos contra autoridades russas, a um tribunal na França! Como pode?
Bem, o tribunal à que a matéria chama de Tribunal de Direitos Humanos de Estrasburgo é na verdade a Corte Europeia de Direitos Humanos, que é baseada em Estrasburgo.
‘Mas a Rússia não faz parte da União Europeia!’, dirá o leitor mais atento. Mas essa corte não tem (quase) nada a ver com a União Europeia. A União Europeia é composta por 27 países e é regulamentada pelos Tratado da União Europeia e Tratado de Funcionamento da União Europeia, além de dezenas de milhares de normas inferiores, inclusive uma chamada de Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia. E se houver desrespeito à essas normas ou tratados, os casos são julgados pela Corte de Justiça da União Europeia (Court of Justice of the European Union), que é baseada em Luxemburgo (até 2010 ela era conhecida como Corte Europeia de Justiça – European Court of Justice).
Já a Corte Europeia de Direito Humanos, que é a mencionada na matéria acima, trata de um outro assunto: ela julga as violações à Convenção Europeia de Direitos Humanos (European Convention on Human Rights), que é uma convenção internacional assinada por 47 países (incluindo os 27 da União Europeia, e a Rússia, mencionada na matéria acima). Essa Convenção, que é bem simples e ‘enxuta’, visa proteger direitos humanos básicos, como o direito à vida, à liberdade religiosa, à privacidade, etc. E quando algum dos 47 países ou algum dos habitantes de um dos 47 países sente que seu próprio país ou um outro país membro da convenção está violando os direitos estabelecidos por ela, ele pode usar a tal convenção para tentar garantir seus direitos tanto nas cortes nacionais quanto na Corte Europeia de Direitos Humanos, que é justamente o que os ativistas russos estão fazendo. (Por uma tecnalidade que não vale a pena explicar aqui, as cortes nacionais também são obrigadas a aplicarem a convenção em processos de um indivíduo contra outro - dentro de um mesmo país ou em países diferentes -, se um dos indivíduos invocar os direitos estabelecidos pela convenção).
Esses 47 países são chamados de Conselho da Europa (Council of Europe). Mas cuidado: Conselho da Europa não é a mesma coisa de Conselho Europeu (European Council) ou Conselho da União Europeia (Council of the European Union), que são dois órgãos da União Europeia e não tem nada a ver com esses 47 países (o Conselho Europeu é o órgão da União Europeia formado pelos 27 chefes de governo além de um presidente; e o Conselho da União Europeia é o órgão da União Europeia formado por ministros dos 27 países membros).
Para complicar, desde 2009 a própria União Europeia se tornou membro da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Ou seja, a União Europeia (a instituição) também pode mover uma ação baseada na Convenção, ou ser ré em uma ação baseada naquela convenção. Em outras palavras, as instituições criadas por uma Convenção (União Europeia) reconhecem e se submetem às instituições criadas por outra (Convenção Europeia de Direitos Humanos).
Por fim, também não podemos confundir essas duas cortes com a Corte Internacional de Justiça (International Court of Justice), que é baseada em Haia (Holanda), nem com o Tribunal Penal Internacional (Internacional Criminal Court), também baseado em Haia. A primeira é uma corte sob os auspícios da ONU e julga conflitos entre países (normalmente sobre territórios), e alcança todos os países membros da ONU. O segundo não está vinculado à ONU: é um tribunal formado para implementar as regras do Tratado de Roma, que estabelecem punições para crimes contra a humanidade/de guerra, quando esses crimes não são punidos pelas cortes nacionais, e abrange 121 países que já ratificaram o tratado.
PS: Se tudo isso não fosse complicado o suficiente, não se esqueça que há a Declaração Universal de Direitos Humanos, que é uma declaração (e não um acordo, convenção ou tratado) feita em nome de todos os países membros da ONU.