"Câncer mata Hugo Chávez, 58, líder populista da Venezuela"
Um dos vários aspectos controversos do agora morto presidente da Venezuela Hugo Chávez foi sua permanência no poder por 14 anos.
Não que democratas não tenham permanecido no poder por um tempo tão longo. Franklin Roosevelt, por exemplo, ficou no poder por mais de 12 anos, e nem só por isso os EUA eram uma ditadura.
Mas a permanência de alguém no poder por tanto tempo levanta questões importantes para as democracias modernas:
A primeira é se ele deveria permanecer no poder. Uma coisa é a lei permitir a reeleição, a outra é se a própria pessoa deve tentar permanecer. Afinal, se você é um democrata, você não quer construir um governo personalista porque, ao sair (por vontade própria, no voto, na força ou no caixão), causará um vácuo institucional, e todo vácuo institucional é danoso ao processo democrático.
Verdadeiras democracias são construídas ao redor de instituições e não de pessoas justamente porque pessoas são necessariamente transitórias. Instituições, não.
Logo, um bom democrata não tenta prolongar-se no poder. Não porque ele não seja bom para o país a curto prazo, mas porque sua permanência enfraquece a democracia a longo prazo.
Foi justamente por isso que a Suprema Corte dos EUA proibiu mais de uma reeleição para presidente.
A segunda questão é a própria alternância do poder. Democracias não gostam de instabilidade. Se alguém permanece no poder por tanto tempo, as instituições e as pessoas desaprendem como lidar com o processo de alternância. E isso causa ainda mais instabilidade. Daí por que, com raras exceções, depois de um longo período com uma única pessoa no poder, guerras civis ou, no mínimo, instabilidade institucional se seguem. E, infelizmente, as exceções a essa regra são os casos em que o país cai diretamente em um regime ainda pior porque o sucessor usa ‘mão de ferro’ para controlar a ‘panela de pressão’ deixada pela saída do último mandatário.
A terceira questão é confusão entre público e privado. Em uma democracia, o Estado não é o governante; o governante é apenas o líder e gerente durante um período de tempo. Em uma ditadura, o governante age como dono do Estado. Sua vontade torna-se lei não porque ela seja necessariamente a lei (embora muitas vezes se torne lei), mas porque não se sabe mais onde governo termina e governante começa.
Quando alguém permanece no poder por muito tempo, é difícil separar o que é governo e o que é governante. As duas esferas tornam-se uma mesma coisa, caracterizada pelo ‘o Estado sou eu’. E essa apropriação do público pelo privado é perigosa porque, quando o privado sai de cena (morte, revolução ou o que seja), ocorre um vácuo também na esfera pública. E esse vácuo quase sempre leva a conflitos para saber quem será seu novo ‘dono’. A esfera pública raramente volta de forma pacífica a quem de fato deveria pertencer: à sociedade.
A última questão é o custo que se paga para se retornar ao poder tantas vezes. Existe um delicado balanço entre imprensa e governantes. Cabe à imprensa fazer as perguntas inconvenientes que, de outra forma, seriam ignoradas. Ela é fundamental para a transparência democrática.
Óbvio que quanto mais tempo um governante permanece no poder, mais perguntas tendem a surgir. Não porque seja necessariamente ruim, mas porque haverá mais atos a serem questionados. Um líder que permaneça no poder por um dia terá muito menos a ser investigado do que se ele permanecesse por uma década.
A permanência de alguém por um tempo grande normalmente acaba gerando questões sobre a liberdade de imprensa ou, no mínimo, as relações entre governo e jornalistas (e veículos).
Em alguns casos – Síria, Coreia do Norte e Cuba, por exemplo – o controle é óbvio. Em outros – Argentina ou Venezuela – o controle ou interferência é menos óbvio, mas é de uma forma ou de outra sentido, mesmo por conta dos choques explícitos entre governo e a parcela da imprensa que ainda o questiona.
Se a imprensa de alguma forma é controlada ou influenciada como mecanismo de permanência do governante no poder, a democracia como um todo sai perdendo.
E aqui, por estranho que soe, o controle da imprensa é pior em regimes híbridos. Isso porque uma ditadura escancarada é uma ditadura escancarada: ninguém tem dúvida de que há um ditador e que ou ele sai por vontade própria (casos raros) ou por meio de uma revolução. Eleição não o tirará do poder (seja porque não há oposição, seja porque os resultados serão manipulados).
Já em um regime híbrido, quase sempre há eleições com oposição. Para vencer a eleição e permanecer no poder, o governante de plantão precisa convencer os eleitores a votarem nele. E, para isso, a imprensa precisa ser controlada de uma forma (realçando os feitos do governante e não fazendo perguntas desconcertantes) ou de outra (destruindo a candidatura adversária). Tudo isso sob um verniz de liberdade e imparcialidade. O resultado é que nunca se sabe se o que está sendo reportado é verdadeiro ou não. Em uma ditadura escancarada, ao menos sabe-se que nada é verdadeiro.
Ditadura ou regime híbridos, o problema é que a imprensa perde sua capacidade de questionar. E não existe democracia sem imprensa livre para questionar.