“Terroristas matam 12 em jornal de Paris para 'vingar Maomé'”
Todas as religiões ocidentais possuem o mito da perseguição. Da fuga através do mar morto às guerras com os atuais vizinhos de Israel, o judaísmo se viu perseguido. Da crucificação de Cristo às invasões mulçumanas na península ibérica, os cristão se viram perseguidos. Das cruzadas à questão palestina, muçulmanos se veem perseguidos. Mesmo dentro dessas grandes denominações religiosas, suas subdivisões se sentiram perseguidas. Dos xiitas perseguidos pelos sunitas aos protestantes que se refugiaram na América do Norte para escaparem da perseguição católica, todas as religiões ocidentais usam o mito da perseguição como catalizador da fé e, por conseguinte, agregador social. Se somos perseguidos, nos unamos. E, dessa união, nasce a possibilidade do nós versus eles, perseguidos e perseguidores.
Isso em si, não é um problema. Estados se justificam e mantêm a coerência usando o mesmo mecanismo. No âmbito internacional, nos agregamos sob bandeiras. EUA versus Inglaterra, França versus Alemanha, Brasil versus Argentina. No âmbito interno, nos agregamos em classes sociais, origens regionais, profissões e assim por diante. Advogados se sentem perseguidos por policiais no direito de defenderem seus clientes, e policiais se sentem perseguidos por advogados no combate ao crime. Mesmo no âmbito familiar, nos agregamos por meio desse mito.
O problema nasce quando perseguidos e perseguidores (e o mesmo grupo está quase sempre em ambos os lados, dependendo apenas do posicionamento religioso de quem vê) passam a agredir o direito alheio, não por regras comuns, mas por regras criadas por si mesmos.
Em ditaduras, isso é esperado. O ditador e seus comparsas criam e impõem regras que lhes satisfazem, e os outros que se submetam ou arquem com as consequências.
Mas em democracia, onde impera o governo de todos para todos e com todos, a imposição de valores de um grupo sobre os outros é muito mais delicada.
Óbvio que ela ocorre porque, inevitavelmente, alguma lei precisa existir e nem todo mundo estará satisfeito com sua existência. Mesmo na melhor das democracias uma lei que criminaliza a pedofilia será imposta contra a vontade dos pedófilos.
A delicada beleza da democracia é encontrar o ponto de equilíbrio onde os direitos e deveres de todos são mutuamente equilibrados e justamente distribuídos.
Isso é relativamente fácil em uma sociedade homogênea, onde todos compartilham visões e ideologias similares. Mas tais sociedades são raras, se não utópicas.
Vivemos em um mundo de sociedades heterogêneas.
Para as democracias ocidentais, o problema é ainda mais complicado porque, justamente por serem democracias, atraem uma enorme variedade de diásporas que nada têm em comum se não o interesse de compartilhar do bem estar proporcionado pela democracia, sem necessariamente concordarem com os mecanismos e valores que geraram tal bem estar e garantem a democracia.
Radicais islâmicos que se refugiam nos EUA ou na Europa não compartilham os ideais e valores dessas democracias, mas desejam se beneficiar do bem estar que a proteção jurídica gera e que não encontram no Oriente Médio ou na África do Norte. Da mesma forma, ex-ditadores se refugiam nessas mesmas sociedades não porque compartilham dos ideais de igualdade dessas sociedades, mas porque desejam se beneficiar do bem estar que a proteção jurídica gera e não conseguem em seus países de origem depois de abandonarem o governo.
O problema para as democracias é encontrar o ponto de equilíbrio no qual extremistas podem se sentir livres para se expressarem, por mais imbecíl que sejam suas ideias, mas ao mesmo tempo não apresentem e representem riscos a essas mesmas democracias que protegem o direito de dizerem coisas idiotas.
Obviamente, o simples fato de que nacionais dessas democracias estão sendo radicalizados por extremistas mostra que ainda não encontramos esse ponto de equilíbrio entre liberdade de expressão e a proteção da estrutura que garante essa liberdade de expressão.
No caso da tragédia acima, talvez o mais triste seja justamente que pessoas que se radicalizaram (e foram radicalizadas) graças ao direito de qualquer um se expressar livremente, se voltaram contra pessoas que lutaram por décadas pela liberdade de expressão de todos.