“Após sequestro, jovem afirma que pretende recomeçar a vida
Anteontem, a polícia prendeu o motorista Carlos Alberto Santos Gonçalves, 57, em Itaboraí (a 45 km do Rio). Ele foi indiciado sob suspeita de sequestro, cárcere privado, violência doméstica e falsidade ideológica. Ele nega.
A mulher, que não quis se identificar, conta que foi sequestrada em 1995 por Gonçalves, que vivia com a sua mãe em Porto Alegre. Ela diz que o motorista foi buscá-la na escola alegando que a levaria para a casa da avó. Em vez disso, começou uma viagem de carona em caminhões até Niterói, onde ficou por mais de uma década.
No Rio, a jovem disse que era agredida frequentemente e que foi estuprada inúmeras vezes.
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Suspeito de sequestrar a enteada, abusar sexualmente da menina dos 11 aos 28 anos e de mantê-la em cárcere privado por 16 anos, Carlos Alberto Gonçalves, 57, alega que tudo o que fez foi com o consentimento da jovem.
‘Não trouxe ela a força’, afirma Gonçalves, que diz que ela quis ir embora com ele.
Segundo ele, a primeira relação sexual com a menina, então com 11 anos, não aconteceu na primeira noite da viagem, como ela afirma, mas cerca de dois meses depois.
‘Nunca foi forçado. Começava com uma brincadeirinha e depois quando via já tava fazendo o serviço’, diz.
Ele admite não achar certo ter relações sexuais com uma criança tão nova.
‘Se é o que eu fiz, eu vou ter que pagar. Se foi considerado estupro, eu vou pagar. Só não entendo porque ela não denunciou antes. Eu cometi um erro, mas ela demorou muito a corrigir esse erro’, acrescentou (…)
Para o delegado Wellington Vieira, da 71ª Delegacia de Polícia (Itaboraí) a prova do abuso sexual é a certidão de nascimento do filho de Gonçalves com a jovem, quando ela tinha 12 anos”.
Há vários pontos interessantes nessa matéria. Por exemplo, alguns dos crimes que ele supostamente pode ter cometido já não são crimes hoje (o crime de rapto, que era “raptar mulher honesta, mediante violência, grave ameaça ou fraude, para fim libidinoso” deixou de existir em 2009). Como deixou de ser crime, ele não pode mais ser julgado por delitos que já não existem, ainda que quando ele tenha agido fosse crime (no direito direito criminal brasileiro, a lei retroage para beneficiar o réu).
Por outro lado, se a pena aumentou ou o crime passou a ter outro nome (por exemplo, fazer sexo com alguém menor de 14 anos, hoje, é estupro de vulnerável e a pena é de 15 anos), ele continua respondendo pelo crime antigo, com a pena antiga.
Um outro ponto interessante é que depois dos 14 anos, a pessoa já pode fazer sexo. Só que se ela for forçada a fazer sexo, é estupro. A matéria acima serve para ilustrar um caso em que a violência não é necessariamente física, mas psicológica, ainda que ela não tenha sequelas físicas. Na matéria acima, houve presunção de violência entre os 12 e 14 anos. Depois disso, mesmo que ela não houvesse sofrido agressões físicas, ela pode ter sido ameaçada ou sofrido violência psicológica para continuar fazendo sexo. Nesse caso, também houve estupro.
Mas o mais interessante na matéria é a declaração do delegado de que a certidão de nascimento é a prova do estupro. Não é. Ela pode até servir como indício de que houve um crime, mas não é uma prova. Vamos entender:
Para que se prove que houve o estupro (ou o estupro de vulnerável), é preciso provar que houve sexo entre criminoso e vítima. Mas a certidão de nascimento do filho não prova isso. Ela prova uma relação de parentesco entre pais e filhos. Mas o nome do pai que aparece na certidão não é necessariamente o pai biológico, ou seja, de quem estuprou.
Digamos que ela tenha sido estuprada aos 12 anos por um desconhecido, e que desse crime tenha resultado uma gravidez. Ela tinha o direito de abortar mas decidiu manter a gestação. Durante a gestação ela conhece alguém, se apaixonam e o namorado decide que quer assumir a paternidade da criança e a gestante aceita a sugestão. Seu nome aparecerá na certidão de nascimento da criança, mas isso não o torna um estuprador. Apenas o torna legalmente responsável pela criança, que passou a ser sua filha, declarando um vínculo jurídico entre eles.
Na matéria acima, provas de estupro seriam, por exemplo a confissão do criminoso, exame de DNA dos filhos e do suspeito ou qualquer sequela física do estupro que ainda seja possível determinar através de exame médico.
Além do erro do delegado, o estranho na matéria é que, ao lavrar a certidão de nascimento, o tabelião não ter notado que a mãe tinha apenas 12 anos, e informado a polícia ou a vara da infância e juventude da cidade, já que isso era indício de que a criança havia sido estuprada por alguém (mas, como vimos, não necessariamente pela pessoa que consta como pai na certidão de nascimento).