“Um jovem de 18 anos foi preso pela Polícia Militar na madrugada de segunda-feira em Monte Alegre do Sul (130 km de São Paulo) sob a suspeita de matar com um chute o motorista da ambulância que o levava para um hospital de uma cidade vizinha.
De acordo com Polícia Civil, o rapaz se envolveu em uma briga na festa de Carnaval de Monte Alegre do Sul e precisava de socorro médico. Ele tinha sinais de embriaguez e passava mal quando era levado na ambulância para a Santa Casa da cidade de Amparo.
No caminho, o jovem quebrou um vidro do veículo com um chute e tentou fugir, ainda segundo a polícia. O motorista, Adécio Pompeu Carvalho, 51, estacionou a ambulância para ajudar o socorrista a conter o rapaz, mas acabou sendo atingido por um chute dele, caiu, bateu a cabeça e sofreu traumatismo craniano.
O motorista morreu enquanto era levado à Santa Casa de Amparo. Ele trabalhava havia sete anos na Prefeitura de Monte Alegre do Sul, era casado e tinha dois filhos.
O jovem acusado pelo crime foi indiciado pela Polícia Civil por homicídio doloso (quando há intenção de matar), resistência à prisão e desobediência à autoridade policial”
A matéria diz que o suspeito foi indiciado por homicídio doloso. Mas vamos tentar entender o que a matéria disse que aconteceu e o crime pelo qual ele foi indiciado.
Já vimos aqui que dolo ocorre quando alguém quer ou assume o risco de produzir um resultado. A matéria diz que ele chutou a vítima para conseguir fugir e que, segundo a polícia, porque esse chute fez com que a pessoa caísse, machucasse a cabeça e morresse, ele teria cometido assumido o risco de matar a vítima.
Existe algo em nosso Código Penal chamado de superveniência de causa independente, da qual já falamos aqui.
O caso acima pode muito bem ser encarado como essa causa independente. Não foi o chute que matou a vítima, foi o fato de, depois de ser chutada, a vítima ter perdido o equilíbrio, caído, batido a cabeça e morrido por conta do traumatismo craniano (ou seja, por conta de ter batido a cabeça).
Reparem quantas coisas aconteceram depois do chute até que ela morresse. Se ela não tivesse caído, ela não teria morrido. Se ela não tivesse batido a cabeça, ela não teria morrido. Tanto ‘cair’ quanto ‘bater a cabeça’ são causas supervenientes. Se o magistrado considerar que elas eram independentes do chute, ainda que apenas relativamente, ele não poderá sentenciar o suspeito pelo homicídio.
Parece estranho, mas imaginemos que alguém que levou um tiro e estava sendo levado de ambulância para o hospital acabou morrendo quando essa ambulância bateu em outro carro. É claro que a pessoa não estaria na ambulância se não houvesse levado o tiro, mas não foi o tiro – ou a consequência direta do tiro – que a matou: foi o acidente de trânsito.
O magistrado pode determinar que a mesma coisa aconteceu na matéria acima. A queda ocorreu porque o suspeito queria fugir e chutou a vítima, mas não foi o chute que a matou: foi o desequilíbrio e, depois, o bater a cabeça.
Nossa lei diz que a causa pode ser apenas relativamente independente e ainda a culpa não poderá ser imputada ao réu. Ou seja, embora a pessoa tenha caído por causa do chute ou tenha sido transportado pela ambulância por causa do tiro, tanto a queda quanto o chute, embora em última instância tenha levado aos eventos que causaram a morte, sua ligação com aqueles eventos é apenas relativa. E causas relativamente independentes excluem a possibilidade da morte ser imputada ao réu.
Óbvio que quem vai decidir se a morte e o chute têm relação de dependência será o magistrado. O fato de a polícia ter indiciado alguém por um crime não quer dizer que o Ministério Público vai concordar com isso quando apresentar a acusação ao magistrado, ou que o magistrado vai concordar com a alegação do Ministério Público. A palavra final é sempre da justiça (magistrado).
Se ele julgar que o chute é uma causa independente (ainda que apenas relativamente independente) da morte, ele ainda assim poderá condenar o suspeito pelo que ele tiver feito. Por exemplo, chutar alguém é um crime de lesão corporal.
Por outro lado, se ele julgar que o chute levou à morte (ou seja, foi a causa da morte), ele ainda terá de decidir se quem chutou queria ou assumiu o risco de matar (o que significa que foi um homicídio doloso), ou se foi um outro crime: lesão corporal seguida de morte, ou seja, o criminoso só queria machucar a vítima e acabou matando-a sem querer.