“Professor de direito ameaça prender aluna
Uma discussão entre uma aluna e um professor de direito do Mackenzie ultrapassou os corredores da faculdade e foi parar nas redes sociais, levantando o debate sobre racismo e abuso de autoridade.
Tudo começou na noite de sexta-feira, quando uma estudante do quinto período resolveu abordar seu professor, o procurador Paulo Marco Ferreira Lima, para questionar seu método de ensino.
A abordagem evoluiu para uma discussão. Lima fechou a porta da sala onde daria aula diante da aluna, que tentou forçá-la. O impasse na porta acirrou os ânimos e os seguranças foram chamados.
Segundo a aluna, que não quer ser identificada, o professor, evocando sua autoridade, ameaçou prendê-la.
‘Ele me disse: 'Nesse momento eu me dirijo a você não como professor, mas como procurador de Justiça. Se você não parar de se dirigir a mim ou ao segurança, vou te dar voz de prisão’, relata (…)
‘Ela me ofendeu muito mais do que poderia. Nunca houve voz de prisão, só houve a intenção de fazê-la parar com as agressões’, conta. Para Lima, a ameaça de prisão não configura abuso de autoridade, já que a jovem não chegou a ser presa. ‘Afirmar que foi abuso de autoridade é um crime de calúnia.’
No domingo, o centro acadêmico lançou pelo Facebook uma nota de repúdio à atitude do professor. Em resposta, Marco Lima, que é irmão do professor e também procurador e professor do Mackenzie, saiu em defesa de Lima lembrando sua afrodescendência e acusou a aluna de racismo.
Em sua página, o irmão do professor diz que a moça chamou Lima de ‘negro sujo’, afirmando ‘preto não pode dar aula no Mackenzie’. A aluna, que é bolsista do ProUni (programa do governo que dá bolsa de estudo a alunos carentes), nega que tenha usado expressões racistas”
Esse caso é interessante para entendermos o que é abuso de autoridade.
Abuso de autoridade é um dos crimes mais longos que temos em nossa legislação. Diversas condutas são abuso. Mas a primeira delas (artigo 3º, alínea ‘a’) diz que "constitui abuso de autoridade qualquer atentado à liberdade de locomoção”. A palavra-chave aqui é ‘atentando’. Afinal, o que é isso? Certamente não é de fato prender porque essa conduta aparece mais adiante, no artigo 4º, alínea ‘a’, que diz que “constitui também abuso de autoridade ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder”.
O problema é que a palavra ‘atentar’ pode significa ‘tentar agir contra’ ou ‘agir contra’. Óbvio que no caso acima, o professor não agiu contra (ela não foi presa), mas será se ele tentou agir contra a liberdade da aluna? Isso é algo que somente o Judiciário vai poder decidir, e magistrados diferentes terão pontos de vistas diferentes se uma ameaça é um atentado.
Mas, se a versão da aluna é verdadeira (o professor não a nega), mesmo que o magistrado venha a julgar que não houve um atentado, pode ter havido um outro crime: ameaça. O crime de ameaça significa “ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave”. No caso, o professor teria ameaçado a aluna de prisão. Se essa prisão é ilegal, poderia ser considerada um mal injusto. Além disso, poucas coisas são mais graves do que a privação de liberdade. E esses são os dois quesitos para que o crime esteja caracterizado. Ela não precisa levar sua ameaça a cabo: tão logo a pessoa faça a ameaça, ela está cometendo este crime.
Existe um detalhe, contudo. Os magistrados brasileiros tendem a decidir que ameaças feitas no calor de uma discussão não contam como crime de ameaça. Apenas aquelas feitas com cabeça fria, de forma calculada. Mas isso não está na lei. A lei não olha o momento ou circunstâncias em que a ameaça é feita. Para a lei, basta que ela seja feita. Logo, o magistrado que estiver julgado essa causa terá também de decidir se irá seguir seus colegas ou se vai julgar se apegar ao que está estritamente escrito na lei.
Enfim, se houve uma ameaça de prisão ilegal, pode ter havido um abuso de autoridade. Mas mesmo que se a Justiça diga que ‘atentar’ não inclui ‘ameaçar’, ainda é possível que tenha havido o crime de ameaça. Mas, nesse segundo caso, alguns magistrados dirão que o crime só ocorreu se o professor estava de cabeça fria no momento em que ameaçou.
Mas podemos aprender mais coisas interessantes com essa matéria.
Por exemplo, o professor se recusou a dizer se a aluna o injuriou, referindo-se de forma ofensiva à sua raça. Se ela se referiu à sua raça de forma ofensiva (o que ela nega) e ele se sentiu ofendido, ela cometeu o crime de injúria agravada pelo conteúdo racial. Mas se ela disse que houve abuso de autoridade e não houve, ela cometeu um outro crime: o de calúnia.
E qual é a diferença entre calúnia e injúria? A calúnia é dizer que alguém cometeu um crime se quem diz sabe que é uma mentira. Logo, dizer que o professor cometeu o crime de calúnia se ela sabe que ele não cometeu, é uma calúnia contra o professor. Já a injúria é imputar uma pecha a alguém. É chamar alguém de alguma coisa ofensiva. Se a ‘coisa ofensiva’ é raça da pessoa, continua sendo uma injúria, só que agravada pelo conteúdo racial, ou seja, o crime é o mesmo mas a pena é maior. E se o professor disse que ela o caluniou mas ele sabe que ela não o fez, ele também está cometendo uma calúnia contra ela!
Por fim, temos o irmão do professor que, segundo a matéria, disse que a aluna cometeu o crime de racismo.
Racismo é um crime bem complexo, mas de forma bem resumida, significa impedir alguém de exercer seus direitos devido à sua raça, cor, etnia, religião ou nacionalidade.
E ela fez qualquer uma dessas coisas? Ainda que ela tenha dito que ‘negro sujo não pode dar aula’ na universidade, ela não tem poder de contratação de professores na universidade, logo ela não poderia ter operacionalmente impedido sua contratação ou continuação de seu contrato de trabalho. Mas essa não é a única forma de impedir alguém de trabalhar. O porteiro que impede a empregada negra de usar o elevador social do prédio não tem poder de contrata-la ou demiti-la mas, ainda assim, a está impedindo de exercer seus direitos devido à sua raça e, por isso, está sendo racista. Logo, se a estudante o impediu de dar aula (que é seu direito, como funcionário da faculdade) por causa de sua raça, ela terá sido racista.
Mas, se ela não fez isso, o irmão é quem cometeu um crime: a calúnia, porque ele disse que ela cometeu um crime, embora isso não seja verdade.
Enfim, alguém cometeu um crime, só não sabemos quem e qual. Só um magistrado poderá decidir.
Existe um outro detalhe muito importante aqui: aparentemente o professor disse que se dirigia à estudante como procurador de justiça e não como professor. Mas sua função de procurador de justiça não lhe concede direitos especiais de prender ou deixar de prender alguém. Se ela estivesse cometendo um crime (não sabemos se estava), ele poderia prendê-la, sim, mas não por ser procurador, mas como qualquer outra pessoa (você e eu, inclusive) pode prender em flagrante alguém que esteja cometendo um delito. Da mesma forma, se ele estava cometendo um crime, ela poderia também prendê-lo em flagrante. No Brasil, apenas alguém com um mandado de prisão pode prender fora do flagrante delito. E, óbvio, ele não tinha um mandado de prisão para prendê-la porque só um magistrado (e ele não é um), pode dar esse mandado, e esses mandados são dados à polícia e não ao Ministério Público (que é onde ele trabalha).
PS: A matéria não diz 'procurador' de que o irmão é. A palavra 'procurador' pode se referir a diversos cargos nas três esferas de poder (municipal, estadual e federal), e nos três poderes (Judiciário, Executivo e Legislativo). É sempre essencial dizermos procurador de que.