“A Justiça do Amazonas inocentou ontem um índio da etnia culina acusado de envolvimento em um suposto caso de canibalismo ocorrido em 2009.
João Culina e outros seis índios eram acusados de esquartejar e comer os restos de um jovem não índio em Envira (a 1.200 km de Manaus).
Segundo a assessoria da prefeitura, o juiz Rafael da Rocha Lima afirmou na sentença que João Culina era inocente por falta de provas (...)
A polícia diz que o corpo do deficiente físico Océlio Alves de Carvalho, 21, foi encontrado em partes, marcado por golpes de facão, e que partes do corpo haviam sumido.
Dos sete índios acusados, dois foram presos: João e Messias Culina. Os outros cinco, incluindo uma mulher, são considerados foragidos. Messias continua preso.
A reportagem não conseguiu ouvir a Funai. Procurada, a família de Océlio Carvalho disse que não tinha recursos para recorrer da decisão”
Várias coisas interessantes aqui. Vamos começar com o canibalismo.
Canibalismo em si não é crime, por isso ninguém é acusado de canibalismo. Matar alguém é crime (homicídio). Mas se a morte ocorreu de forma natural, você não matou e logo você não pode ser acusado de homicídio. Mas isso não quer dizer que você possa sair por aí comendo cadáveres. Isso porque embora o cadáver não tenha direitos (morto não é pessoa e apenas pessoas têm direitos), ele é um objeto de direito, ou seja, ele é ‘algo’ (e não ‘alguém’) protegido pela lei. Protegido porque o respeito à memória dos mortos é importante para a família e para a sociedade. Logo, se você retirar o dente de um cadáver, ou praticar necrofilia (sexo com cadáver) ou simplesmente comer o cadáver, você estará cometendo um crime. Esse crime é chamado de vilipêndio ao cadáver e está no artigo 212 de nosso Código Penal.
Mas várias culturas indígenas envolvem rituais de antropofagia, seja exofagia (comer o inimigo) ou endofagia (comer membros da própria tribo ou família). Então quer dizer que os índios estão cometendo crimes?
Não. Eles estão cometendo atos que se eu ou você cometêssemos seriam considerados criminosos, mas alguns índios são inimputáveis criminalmente. E quais índios são inimputáveis? Aqueles que ainda não estão inseridos na sociedade. E obviamente índios que ainda se apegam às práticas antropofágicas ainda não estão inseridos em nossa sociedade. Mas outros estão.
De uma forma muito simplificada, os índios podem ser divididos em três categorias: primeiro, há aqueles que estão total ou quase totalmente isolados de nossa sociedade. Esses são inimputáveis criminalmente porque, segundo nosso Código Penal, têm desenvolvimento mental incompleto (a linguagem do Código Penal parece ofensiva, mas não podemos nos esquecer que ele foi escrito na década de 40).
O segundo é aquele grupo que tem algum contato com a sociedade, sabe as regras básicas das civilizações modernas, mas não sabe todas suas regras (por exemplo, ele vai saber que comer carne de cadáver não é uma prática aceita por nossa sociedade, mas talvez não saiba que matar um animal em extinção seja crime contra a fauna). Esse grupo é considerado semi-imputável, ou seja, vai responder por suas ações, mas porque “não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”, sua pena pode ser reduzida de um a dois terços. É o que está no parágrafo único do artigo 26 de nosso Código Penal.
E há um terceiro grupo que está inteiramente integrado à nossa sociedade. As diferenças culturais são – se existirem – apenas superficiais. Dirigem caminhonetes, têm contas bancárias, assistem TV, fazem compras em supermercados, etc. Esses sabem (ou deveriam saber) seus direitos e obrigações de acordo com as regras de nossa sociedade e por isso devem responder da mesma forma como eu ou você respondemos por nossos atos.
No caso da matéria acima o juiz os absolveu por falta de provas, ou seja, teoricamente eles não eram inimputáveis.
Há outros detalhes interessantes na matéria:
Reparem que a reportagem recebeu informação da prefeitura e não do Judiciário. Mas judiciário e executivo são poderes diferentes. E estado e município são esferas de poder diferentes. A prefeitura é poder executivo municipal. O juiz é poder judiciário estadual. Logo, seria a assessoria de imprensa do TJ do Amazonas quem deveria ter prestado declarações, e não a prefeitura da cidade onde o processo foi julgado.
Reparem também que a família da vítima diz que não tem dinheiro para recorrer contra a absolvição do acusado. Mas não é ela quem deve recorrer. Quem está acusando é o Ministério Público. É ele quem deve recorrer, se achar necessário. É o que chamamos de ação penal pública: não cabe à vítima ou a sua família mover a ação contra o suspeito.
Por fim, há algo muito interessante sobre quem julga os crimes cometidos por índios: os direitos indígenas são julgados pela justiça federal (está no art. 109, XI de nossa Constituição), mas os crimes cometidos por um índio ou nos quais o índio é a vítima são julgados pela justiça estadual. Isso foi decidido pela Súmula 140 do STJ, depois de muita controvérsia. A lógica é que a justiça federal julga os direitos da população indígenas (coletivo) e não de um indivíduo. Mas há exceções: o STJ decidiu, por exemplo, que nos casos de crimes cometidos em uma disputa por terras (por exemplo, quando os índios impedem o funcionário da Funai ou um garimpeiro de ir embora), eles devem ser julgados pela justiça federal. O critério é saber se há um direito coletivo envolvido ou não: se houver, será julgado pela justiça federal. Caso contrário, pela justiça estadual.
PS: Para quem gosta de casos extremos: o livro Moby Dick foi inspirado em uma história real que, por sua vez, não era rara: os náufragos, à deriva, se vêem forçados a comerem os restos mortais de um dos colegas. Nesse caso não há crime pois é um estado de necessidade: ou comem ou morrem de fome. Mas era comum também, depois de já não haver mais restos mortais a serem comidos, sortearem um dos sobreviventes para ser sacrificado e comido. Do ponto de vista jurídico a questão fica mais delicada porque, em teoria, ainda estão em estado de necessidade, mas é sempre mais complicado defender o estado de necessidade quando ele envolve tirar a vida de alguém para preservar a de outra pessoa, especialmente porque a morte por inanição é provável mas não é certa, enquanto o sacrifício do colega náufrago é certo. Em princípio, é isso que os médicos estão fazendo quando separam gêmeros xipófagos sabendo que um deles irá morrer na separação, mas também sabendo que será muito provável que ambos morrerão se continuarem unidos.