Mas se olharmos para o quadro de medalhas brasileiro, vemos que nenhum negro brasileiro ganhou medalha (ainda). O fato é especialmente estranho se levarmos em conta que em outros países com composição racial parecida com a brasileira, como os EUA, a proporção de medalhas ganhas por brancos é bem menor. Mesmo alguns países onde a grande maioria é branca, como o Reino Unido, por exemplo, possui uma proporção maior de não-brancos ‘medalhados’ (12%).
Como os números do primeiro parágrafo exemplificam, não há uma diferença genética entre brancos e negros que justifique a atual ‘supremacia’ branca no quadro de medalhas brasileiro. Com uma população composta de mais da metade de negros e pardos (50,7%), deveríamos ter mais da metade das nossas medalhas conquistadas por atletas negros e pardos.
Já falamos da importância de uma política estratégica de investimento em esportes. Tal política não é só importante na escolha dos esportes nos quais investir, mas também como investir.
Ainda que, em teoria, todos tenham as mesmas oportunidades, o preconceito racial no Brasil aparece de quatro formas indiretas, que acabam privilegiando os esportistas brancos:
Primeiro, cultural. Alguns esportes ‘não são de negros’, especialmente no Brasil. Existem elementos tanto de exclusão e auto-exclusão. Técnicos, cartolas, juízes e mesmo audiência acham ‘estranho’ ver um negro em determinados esportes. Hipismo, natação, remo, tênis, vela e tantos outros esportes são tradicionalmente ‘redutos’ brancos no mundo e no Brasil. Estamos 'preparados' para ver negros competindo em esportes como atletismo, boxe, futebol ou basquete, mas não em 'esportes de brancos'.
Esse bloqueio cultural exclui milhares de jovens negros que são convencidos de que o lugar deles não é ali, ainda que tenham interesse no esporte. Esportistas como Lewis Hamilton e Tiger Woods mostram que, geneticamente, não há nada que impeça um negro de brilhar em esportes tradicionalmente dominados por brancos. Mas para entrar e permanecer no esporte, jovens negros precisam sentir que aquele ambiente pertence a eles e que eles pertencem àquele ambiente. Se o ambiente os exclui, obviamente não competirão naquele esporte ainda que tenham o talento para vencer no futuro.
A segunda barreira é econômica. Alguns esportes, como hipismo, automobilismo, tênis e vela, envolvem um custo financeiro alto. Seja na aquisição do equipamento, seja na manutenção do local de treino. Pense no tênis: ainda que a raquete não seja tão cara, no mesmo espaço onde 12 crianças podem jogar futebol de salão, apenas dois tenistas podem treinar ao mesmo tempo. E enquanto um jogo de futebol dura uma hora, um jogo de tênis dura muito mais. O resultado é que o custo de treinar tênis é muito maior.
Se a criança ou adolescente não tem apoio financeiro, não consegue começar ou continuar nos esportes caros. Como negros são estatisticamente mais pobres no Brasil, acabam excluídos desses esportes. Quantas vezes você viu um velejador negro brasileiro competindo em uma olimpíada?
O terceiro obstáculo é educacional. Como qualquer pessoa que já praticou qualquer esporte sabe, esporte é muito mais interessante quando praticado em grupo. Até correr é mais divertido quando se tem um parceiro de treino. E onde criamos nossas principais relações de amizade? Na escola. Onde aprendemos (ou deveríamos aprender) as regras e técnicas de um esporte? Na escola.
Mas poucas escolas dedicam qualquer espaço em seus currículos para esportes que não sejam futebol, basquete e vôlei. Entre as escolas públicas (onde a maioria negra estuda), poucas têm piscina, quadra de tênis, pista de atletismo ou mesmo um ginásio. Menos ainda professores que saibam as regras ou técnicas de esportes que não sejam os três óbvios. Entre as que têm algum tipo de atletismo, ele quase sempre é praticado como ‘tamanho único’, onde todos os estudantes praticam todos os esportes (basicamente corrida), sem levarmos em conta suas aptidões naturais, preferências pessoais e ritmo de desenvolvimento.
Por fim, existe o problema urbanístico. Mesmo se a criança escapar de todos os outros preconceitos, encontre um bom técnico e resolva praticar determinado esporte no seu horário livre, ela precisa de um local. Mas como ela pode praticar tal esporte se em sua cidade não há uma pista de ciclismo, um local para praticar atletismo ou um ginásio adequado? E, mesmo em grandes cidades onde esses locais às vezes existem, eles quase sempre estão em bairros de classe média alta ou alta (quase sempre em clubes), longe de bairros pobres, onde a maioria da população negra mora, o que na prática impossibilita sua prática.
Com brancos sendo estatisticamente minoria no país, qualquer política de investimento para aumentar o número de medalhas brasileiras precisa não só focar em esportes que gerem mais medalhas com menos recursos humanos, mas também mitigar o preconceito que a vasta maioria da população sofre, ou continuaremos a desperdiçar seres humanos.