“Boston, um conto mal contado
Barack Obama tem toda a razão ao dizer que há muitas perguntas não respondidas no caso de Boston (…)
Se o rapaz estava gravemente ferido, se não reagiu a tiros quando o proprietário do barco levantou a lona para verificar o que estava acontecendo, como é que poderia se envolver em uma troca de tiros cinematográfica com a polícia, como os vizinhos a descreveram?
Parece mais uma tentativa de fuzilamento sumário, o que dá margem a duas críticas: primeiro, é de novo contraproducente para a investigação, do que dá prova o fato de que Dzhokhar não está podendo ser devidamente interrogado, por causa dos ferimentos recebidos.
Segundo, fere um princípio civilizatório básico segundo o qual todos são inocentes até prova em contrário, prova que a polícia ainda não produzira, tanto que ele continuava a ser tratado como suspeito.
Afinal, é como escreveu Glenn Greenwald, colunista de direitos civis do ‘Guardian’: ‘Dezenas, se não centenas de detidos em Guantánamo, acusados de serem os piores dos piores, não eram culpados de nada. Evidências apresentadas pela mídia não substituem o devido processo legal e um julgamento com direito a contraditório’"
Deixando os fatos do atentando de lado (é justamente para isso que há uma investigação em curso), a coluna levanta um ponto importante: a tensão que existe entre a presunção de inocência e o flagrante.
Imagine que um criminoso mate alguém sem que ninguém veja o crime e logo em seguida, ele, tentando evitar um cerco policial, se desespera, acelera o carro, atira e fere um policial. Ele cometeu dois delitos em dois momento distintos: ele matou a primeira vítima e ele feriu a segunda. No primeiro, há a presunção de inocência de forma incontestável. Mas e no segundo? Afinal, ele foi preso atirando no policial.
Aqui o problema é muito mais complexo porque não podemos falar em presunção de inocência nos mesmos moldes da primeira ação. Seria tapar o sol da realidade com uma peneira teórica. Daí, por exemplo, a maior parte das democracias permitir a prisão em flagrante. Se realmente houvesse total presunção de inocência, não haveria nunca a possibilidade de prisão em flagrante. Prisão seria apenas possível depois de condenado.
O fato é que devemos presumir que ninguém é considerado culpado até o trânsito em julgado de uma condenação. Mas isso não quer dizer que possamos ou devamos ignorar a realidade dos fatos.
Se um indivíduo passa a atirar contra a polícia durante uma perseguição policial, a polícia não é obrigada a fingir que ele é inocente porque aquele atirador ainda não foi considerado culpado: a realidade dos fatos é que ele está atirando. Tudo leva a crer que ele está cometendo um crime naquele momento. Daí a polícia poder prendê-lo em flagrante. Isso não quer dizer que ele será considerado culpado pela polícia (só a Justiça pode julgá-lo e condená-lo), mas ele passa a ter o ônus de explicar seu comportamento. Se ele não se justificar, durante o julgamento o magistrado olhará os fatos e dirá ‘todas as evidências indicam que você cometeu um crime e você não apresenta uma explicação alternativa’.
Daí também a razão de casos envolvendo flagrante serem muito mais fáceis para a acusação.
Aliás, algumas democracias mais sólidas que a nossa estabelecem que se, preso em flagrante, o suspeito não se justificar imediatamente à polícia, deixando para apresentar suas justificativas apenas no julgamento, juízes e jurados podem presumir que ele está mentindo. Algo como ‘se você tinha uma explicação racional para estar onde estava, ter sido encontrado com determinados objetos ou com determinadas marcas, ou tinha um álibi, e não a apresentou à polícia, mas resolveu apresenta-la agora no julgamento, podemos presumir que você está mentindo’.
Não será a polícia quem irá condenar o suspeito, mas isso não quer dizer que o grau de suspeição sobre alguém preso em flagrante não seja muito maior. Se quisermos dizer que ainda devemos presumir que ele é inocente, tudo bem. Se quisermos dizer que há elementos de culpa, também tudo bem. São eufemismos para uma mesma conclusão: o ponto de partida é diferente do de alguém que não foi pego cometendo um crime.
E aqui entra o problema em relação aos prisioneiros em Guantánamo: uma boa parte não foi presa em flagrante. Foi presa com base em informações anônimas ou obtidas sob tortura, em informações de serviços de inteligência etc. Alguns foram presos sem sequer saber-se por qual delito. Ou seja, não foram presos cometendo um delito.