“Denúncia de aborto fere ética, dizem médicos
Ao comentar o caso do clínico geral que chamou a polícia após atender uma jovem que provocou aborto em São Bernardo do Campo (SP), médicos levantaram a questão da conduta e da ética médica nesse tipo de situação (...)
Um parecer do Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo) estabelece normas de conduta específicas: ‘Diante de um abortamento (...) não pode o médico comunicar o fato à autoridade policial ou mesmo judicial, em razão de estar diante de uma situação de segredo médico’ (...)
O sigilo só pode ser quebrado em três situações, segundo Azevedo Júnior: quando há autorização expressa do paciente; em caso de dever legal (no caso de notificações compulsórias à Vigilância Sanitária de doenças infectocontagiosas, como a Aids) e quando há justa causa.
Nesse último caso, o médico deve revelar um segredo para proteger a saúde de um terceiro - uma criança que sofreu abuso, por exemplo.
‘Nenhum desses exemplos diz respeito à situação dessa jovem. Médico não tem que fazer papel de polícia ou juiz. Mesmo que haja uma convicção pessoal contrária ao aborto, ela não pode suplantar o código de ética que rege a profissão’, afirma.”
Do ponto de vista jurídico, há cinco pontos importantes nessa história.
Aborto é crime no Brasil (exceto nos casos de risco à vida da gestante ou de gravidez resultante de estupro), ainda que seja amplamente praticado por pessoas de todas as classes sociais.
Segundo, médicos têm o dever de manter o sigilo profissional, com as exceções bem explicadas na reportagem acima.
Terceiro, por causa do segundo ponto acima, médicos não têm a obrigação de informar a ocorrência de abortos à polícia, ainda que a prática seja crime. Eles estão protegidos pela Constituição que dá a eles a proteção do sigilo profissional. É sob essa mesma proteção que psicólogos clinicam.
A confiança do paciente no sigilo profissional do profissional médico que o assiste é essencial para que o paciente possa sentir-se confortável o suficiente para expor seus problemas ao profissional. Se o paciente tem receio de se abrir com seu psicólogo, não há possibilidade de terapia. O mesmo ocorre com médicos na consulta, padres na confissão e advogados em relação a seus clientes.
E mais: a relação de confidencialidade aqui não é apenas ética profissional, é também contratual. A importância disso ficará mais clara mais abaixo.
Quarto, se o profissional desrespeita o sigilo e informa a polícia, esta tem a obrigação de investigar o crime. A obrigação de manter o sigilo recai sobre o profissional. É ele quem não deve vazar a informação. Mas uma vez que a informação chega à polícia, a polícia tem a obrigação legal de investigar a existência do potencial crime.
Quinto, ainda que a pessoa tenha cometido o crime e a polícia tenha tomado conhecimento de tal crime através da quebra injustificada do sigilo profissional médico, a pessoa que cometeu o crime pode – ao menos em teoria – processar civilmente o profissional que desrespeitou sua obrigação de manter sigilo.
No processo civil a pessoa busca a reparação financeira pelas perdas sofridas pela quebra dos termos contratuais pelo profissional.
‘Há, mas o médico e a paciente sequer assinaram um contrato, muito menos um que mencionasse a obrigação de o médico manter sigilo profissional’.
É verdade. Mas contratos não são formados apenas de forma escrita e não estão restritos apenas aos termos que estão contidos em uma determinada folha de papel. Os direitos de um consumidor, por exemplo, estão protegidos pelo Código de Defesa do Consumidor ainda que não haja um contrato assinado entre o consumidor e quem lhe vendeu o produto ou prestou o serviço.
O mesmo vale para profissionais que têm a obrigação de manter o sigilo profissional. Se um advogado resolve desrespeitar a sua obrigação de manter o sigilo em relação ao que seu cliente lhe disse, ele estará rompendo termos implícitos da relação contratual que mantêm com seu cliente. O mesmo ocorre com o médico e o psicólogo (mas, provavelmente não com o padre).
Sim, o médico informou a polícia sobre um crime, e contratos não podem ter por objeto um trabalho ilícito. Um contrato para matar alguém, por exemplo, é ilegal e seus termos são inválidos. Mas o objeto do contrato entre o médico e o paciente na reportagem acima não era a prestação de um serviço ilícito, mas de um serviço lícito: prestar atendimento médico. Ilícito seria, por exemplo, se a paciente houvesse tentado contratar o médico para cometer o aborto. Neste caso, sim, o médico teria não só o direito como a obrigação de informar a polícia.
Mesmo que o médico alegue que nunca houve contrato entre ele e o paciente, o art. 186 de nosso Código Civil diz que quem viola o direito de outra pessoa e causa dano (ainda que exclusivamente moral) a esta pessoa comete um ato ilícito, o que gera a obrigação de reparação financeira.