“Pela lei brasileira, médico e paciente cometeram crime
Do ponto de vista jurídico, o caso da jovem denunciada pelo médico após ter feito aborto coloca em confronto normas de mesmo peso no direito criminal.
Isso porque o mesmo Código Penal que trata da criminalização do aborto prevê punição para a quebra de sigilo profissional.
Assim, segundo criminalistas ouvidos pela Folha, tanto médico quanto paciente cometeram crime (...)
Segundo eles, há brechas para a defesa de ambos os envolvidos. ‘O médico pode alegar 'erro de proibição', que é efetuar ato acreditando estar ele de acordo com a lei’, afirma Guilherme Maddi, diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (...)
Já em defesa da jovem, explica Maddi, poderá ser usado o argumento de ‘prova ilícita’, obtida com a violação de uma norma.”
Ontem tratamos o assunto do ponto de vista civil. Hoje vamos usar a reportagem acima para tratar do mesmo assunto do ponto de vista penal.
O art. 154 de nosso Código Penal diz que é crime “revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem”.
O problema de se tentar punir penalmente o médico que revela a existência de um crime cometido por seu paciente é o “sem justa causa” que aparece no art. 154.
Imagine a seguinte situação: alguém chega esfaqueado ou baleado no posto médico. O médico trata do paciente, mas não tem como saber se o paciente é a vítima que necessita da proteção policial ou o criminoso, ou mesmo se há outras vítimas a serem socorridas pela polícia. Daí porque a melhor prática para o médico é informar a polícia.
‘Ah, mas se ele chamar a polícia ele pode estar violando o sigilo profissional’. Sim, é verdade. Não é porque alguém apareceu baleada que a obrigação de manter o segredo profissional desaparece. E é por isso que a lei diz que, mesmo que haja a obrigação de manter o segredo profissional, se houver justa causa o médico pode violar tal segredo. Justamente por não ter bola de cristal, é mais seguro para ele chamar a polícia.
Aqui há um detalhe importante. A justa causa é analisada não sob o ponto de vista objetivo (ou seja, se de fato existia uma justa causa), mas do ponto de vista subjetivo (ou seja, se o médico acreditava e tinha razões suficiente para acreditar que havia uma justa causa para chamar a polícia).
(Há, aqui, uma distinção tênue mas importante entre o direito penal e o civil, que vimos ontem. Na análise da quebra do sigilo no mundo penal, olhamos se havia justa causa a partir do ponto de vista subjetivo do médico. No mundo civil, a análise é objetiva.)
No caso da reportagem acima, então, o médico pode dizer que agiu acreditando que havia uma justa causa?
Esse argumento é mais complicado no caso do aborto. Ao contrário de uma vítima que chega baleada no pronto-socorro, onde não se sabe se há outras vítimas e se o crime pode estar ainda ocorrendo, no aborto descrito na reportagem acima o crime já ocorreu. A polícia não foi chamada para proteger outras potenciais vítimas ou a mulher que praticou o aborto. Logo, é muito mais difícil alegar que o médico tinha razões para acreditar que havia justa causa.
E o argumento do erro de proibição proposto pelo advogado na reportagem acima? O médico pode alegar que desconhecia a lei e achava que tinha a obrigação de chamar a polícia?
Como argumento de defesa, ele é válido, mas fraco. Médicos são pessoas que passam anos na faculdade estudando ética profissional. Têm por obrigação saber quando devem chamar a polícia. Têm amplo acesso a resoluções e pareceres de seus conselhos regionais de medicina que dão orientação a esse respeito. Seria o mesmo que um motorista alegar que dirigia acima do limite de velocidade porque desconhecia a lei. Pode até ser verdade, mas ele tinha a obrigação de conhecê-la já que teve de estudá-la para obter a habilitação.
Então quer dizer que o médico será processado e condenado?
Não necessariamente. Por irônico que possa parecer, o médico só será processado criminalmente se a vítima – no caso, a mulher que cometeu o aborto – quiser. Isso porque a violação de segredo profissional é um crime de ação penal privada: só há processo se a vítima representar contra o médico. Ademais, como a pena máxima é baixa (um ano), a possibilidade de prescrição é grande.
E a mulher que cometeu o aborto pode alegar que as provas contra si foram obtidas ilegalmente?
Novamente, ele é válido como argumento de defesa, mas é frágil. A polícia não obteve a prova de maneira ilícita. Não foi a polícia quem violou o sigilo ou forçou o médico a violar o sigilo. O médico voluntariamente violou o sigilo, a polícia tomou conhecimento e passou a investigar.
Ademais, mesmo que a Justiça diga que a prova foi obtida de forma ilícita, essa não é a única prova. Exames médicos feitos posteriormente ou mesmo as entrevistas que ela está dando aos jornais podem funcionar como provas em um processo. Afinal, ela está voluntariamente constituindo prova contra si.