“Juiz é investigado por dirigir carro apreendido de Eike Batista
O juiz Flávio Roberto de Souza, titular da 3ª Vara Federal Criminal do Rio, foi flagrado, na manhã desta terça-feira (24) dirigindo o Porsche Cayenne do empresário Eike Batista, apreendido pela Polícia Federal no início do mês (...)
O juiz responde ainda a processo que questiona sua imparcialidade e pede seu afastamento da ação penal, impetrado pela defesa de Eike, após ter dito que o empresário era ‘megalomaníaco’ e que o caso era ‘emblemático’ (...)
Souza solicitou ao Detran, no dia 11, que o Porsche e um Hilux, também de Eike, ficassem à disposição do juízo.
À garagem do condomínio em que mora o juiz, além do Porsche, foi levado uma Land Rover de Thor, filho de Eike. Souza disse ter nomeado um morador do condomínio como fiel depositário do carro (...)
‘A PF não tinha depósito seguro e lá ficaria exposto ao sol, chuva e possíveis danos. Como eu queria o carro em bom estado de conservação, levei para uma vaga coberta [no prédio onde mora]. Não levei para usar, só para ficar guardado’, disse o juiz.”
Cabe à Justiça preservar os bens particulares que estejam em seu poder. Se tais bens sofrerem danos enquanto no poder do Estado, este responde pelos danos ainda que eles não tenham sido causados por negligência, imprudência ou imperícia do servidor público responsável por sua guarda. É o que se chama de responsabilidade objetiva do Estado. Logo, em casos como o descrito na reportagem, cabe ao magistrado ponderar se o risco de o veículo ser danificado enquanto estacionado em uma repartição pública protegida por sistema de segurança era maior do que enquanto em circulação em uma via pública e estacionado em uma propriedade privada.
Do ponto de vista penal, o servidor público que se apropria de um bem público (ou do bem de uma pessoa privada que estava em seu poder por causa de sua posição como servidor público) está cometendo peculato, que é, posto de forma simples, a união dos crimes de furto e de apropriação indébita, mas cometidos pelo servidor público em relação aos bens públicos ou particulares.
Mas para que haja o peculato, é essencial que o servidor público tenha a intenção de permanecer com o bem (ou de transferi-lo de forma permanente a terceiro). Se o servidor público ‘apenas’ usa o carro apreendido para dar um ‘rolezinho’ ou a lancha da repartição para levar a família à praia, ele não está cometendo peculato.
Já explicamos o assunto aqui, mas vale repetir:
A lei diz que é peculato apropriar-se ou subtrair o bem. E, segundo a interpretação de nossos tribunais e juristas, isso significa ter a intenção de não retornar o bem ao seu legítimo dono.
É o mesmo que ocorre com o furto: a pessoa que subtrai o bem alheio com a intenção de retorná-lo mais tarde não está cometendo furto. É o que os juristas chamam de furto de uso, que não é crime pela lei brasileira.
O mesmo ocorre com o chamado peculato de uso: o servidor público que usa o carro da repartição para levar o filho à escola não está cometendo peculato se ele não tem a intenção de ficar com o carro de forma permanente.
Em resumo, não há peculato de uso (quando muito, poderia se falar em peculato do combustível) e, por isso, o uso do carro em si não é peculato.
Mas, do ponto de vista processual, o juiz que passa a usar o carro do réu torna-se impedido ou suspeito para julgar a causa?
Nosso Código de Processo Civil diz que o magistrado é impedido de julgar a causa se:
- For parte;
- Interveio como mandatário da parte, oficiou como perito, funcionou como órgão do Ministério Público, ou prestou depoimento como testemunha;
- Julgou o processo em primeiro grau;
- Seu cônjuge ou qualquer parente seu (consanguíneo ou afim, em linha reta; ou na linha colateral até o segundo grau) estiver postulando como advogado da parte;
- For cônjuge, parente, consanguíneo ou afim, de alguma das partes (em linha reta ou, na colateral, até o terceiro grau);
- Fizer parte da direção ou administração de pessoa jurídica parte na causa.
Nenhum dos casos acima se aplica ao magistrado que usa o veículo de uma das partes.
O mesmo Código diz que o magistrado se torna suspeito se:
- For amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes;
- Alguma das partes for credora ou devedora do juiz, de seu cônjuge ou de parentes destes, em linha reta ou na colateral até o terceiro grau;
- For herdeiro presuntivo, donatário ou empregador de alguma das partes;
- Receber dádivas antes ou depois de iniciado o processo; aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa, ou subministrar meios para atender às despesas do litígio;
- For interessado no julgamento da causa em favor de uma das partes.
Nenhum dos primeiros quatro pontos se aplicam ao magistrado que se utilizou do carro apreendido do réu (exceto se o uso do carro é evidência de que eles eram amigos íntimos ou inimigos mortais).
É o quinto ponto que gera problema.
Ao contrário do impedimento (que é sempre objetivo), a suspeição é sempre subjetiva e, por isso, muito mais complicada de ser provada contra o magistrado. Por isso mesmo cabe ao magistrado se dizer suspeito antes mesmo que as partes o aleguem. Ninguém melhor do que o próprio magistrado para saber se ele é suspeito para julgar determinada causa. Como diz o ditado, a mulher de Cesar precisa não só ser honesta, mas também parecer honesta. Cabe ao magistrado se afastar do processo se há qualquer possibilidade de sua presença colocar a imparcialidade do julgamento em cheque e, com isso, ferir a imagem do Judiciário.
Mas se ele não se diz suspeito, qualquer das partes pode pedir ao tribunal acima do magistrado que o afaste por suspeição.
Como o tribunal não tem acesso à mente ou alma do magistrado para aferir seus reais sentimentos, ele precisa usar evidências do comportamento do magistrado para saber se ele é suspeito. E é ai que a manifestação de opiniões acerca do processo fora dos autos (o que é proibido pelo art. 36, III da Lei Orgânica da Magistratura Nacional), o uso de bens apreendidos, ou qualquer outro comportamento que possa ser caracterizado como a externalização de um sentimento anormal do magistrado que possa interferir em sua imparcialidade, passa a ser relevante para que o tribunal determine se o magistrado possui um comportamento que demonstre que ele é suspeito. Mesmo que nenhum ato individualmente considerado demonstre sua suspeição, o conjunto de pequenas evidências pode formar a imagem de um quabra-cabeça que leve o tribunal a determinar o afastamento do magistrado.