Monopólio da violência não legitima seu uso automaticamente
Em uma democracia, apenas o Estado pode usar a violência. Mas isso não significa que ele deva usá-la.
Ter o monopólio do uso da violência não confere, automaticamente, legitimidade a seu uso. Ele só é legítimo quando necessário e na medida da necessidade.
Quando a polícia atira contra manifestantes que não oferecem risco, ela extrapola o uso legítimo. Quando a polícia atira contra manifestantes com os quais poderia lidar de forma menos violenta, ela extrapola o uso legítimo da violência. Em ambos os casos, seus agentes cometem crimes.
Sim, em manifestações anteriores houve depredação e elas saíram de controle. Policiais foram feridos. Mas ações anteriores não conferem legitimidade à retribuição atual.
O debate nessas horas gira em torno da culpabilidade penal e das compensações civis às vítimas dos excessos dos policiais. Mas isso apenas remedia o problema. Não o resolve.
Se policiais atiraram quando não deveriam, é porque não foram bem selecionados, bem treinados, e bem comandados.
Infelizmente, esses três problemas são problemas que não são resolvidos a curto prazo. Envolvem melhorias significativas do sistema educacional, envolvem uma profunda mudança na cultura institucional das organizações policiais, envolvem uma mudança na cultura do ‘nós versus eles’ que polícia e sociedade mantêm uma contra a outra, que vem de uma história de golpes militares, opressão e insurgência. Enquanto não estivermos em paz com nossa história, polícia e sociedade se oporão com frequência e com violência.
Mesmo se ilegal, o protesto pode esconder uma revolta legítima
É perigoso focar o debate exclusivamente na legalidade dos protestos. Há pouca dúvida de que houve crimes nas manifestações anteriores, mas os indícios é que são sintomas de problemas mais profundos que precisam ser resolvidos pelo Estado e pela sociedade.
Da mesma forma como as mudanças propostas em Taksim, na Turquia, foram apenas o estopim que catalisou a explosão de um sentimento acumulado, nossos protestos podem ser contra aumentos de tarifas, mas a revolta é contra a violência urbana que cerca o indivíduo, o poder público que não representa o eleitor, a infraestrutura que inexiste, o transporte que não funciona, as disparidades econômicas. Enfim, contra mazelas de cidades que se expandem sem senso de comunidade, tornando-se aglomerados de estranhos.
Os protestos causam justamente aquilo contra o que se revolta: congestionamentos, destruição, violência, desagregação social. Mas o que pode parecer um contrassenso, tem sua lógica.
Ao tomarem as ruas, os manifestantes tomam o poder que lhes é negado no dia a dia. É a violência que eles causaram, e não da qual são vítimas. É o congestionamento que provocam, e não no qual definham. É a destruição contra o patrimônio alheio, e não contra o patrimônio que mal conseguem acumular.
Por contraditório que pareça, a revolta não expressa apenas a oposição ao Estado e ao restante da sociedade que não reconhecem como seus, mas também cria a sensação de pertencer a uma comunidade e estar no controle da esfera pública.
A revolta se torna um mecanismo de representação daqueles que não se sentem representados pelas instituições.
Sem resolver o problema de representatividade do Estado e de integração social, controlaremos os protestos, mas não o sentimento de revolta, que continuará a acumular até um próximo estopim.
Ser gratuito não sai de graça
Mesmo que os protestos sejam apenas uma plataforma para demonstrarmos nosso descontentamento, precisamos ao menos entender o que está sendo reivindicado: a gratuidade ou subsídio do transporte público.
Se vamos usar impostos para subsidiar o transporte público, esse dinheiro sairá de algum lugar. Seja de nossos bolsos (através de mais tributos), seja de outras áreas (saúde, educação etc).
Esse é o mesmo debate que acontece com a ‘meia-entrada’ para cinemas, teatros, futebol etc, ou com outros serviços prestados gratuitamente pelo Estado (saúde, educação, bolsa-família etc). Não é que miraculosamente os preços caem ou o dinheiro surge do nada, mas apenas que alguém o está subsidiando.
Embora a noção de um Estado protetor seja atraente, os exemplos históricos mostram como é fácil errarmos a ‘dosagem’: economias colapsadas (União Soviética, Alemanha Oriental) ou que precisam se apoiar em regimes ditatoriais para neutralizar sua instabilidade (Cuba, Coreia do Norte, Venezuela), ou ambas as coisas.
Mas há outros dois debates importantes aqui: ao aumentarmos o preço do transporte público, incentivamos as pessoas a procurarem alternativas. No caso da maior parte das cidades, o uso do carro, o que coloca ainda mais pressão na malha urbana. E do outro lado, são justamente os mais pobres – que não têm carro – que acabam mais prejudicados com tais aumentos.
Ao mesmo tempo, não adianta incentivos na direção oposta – subsidiar as tarifas de ônibus e metrô – para que as pessoas usem o transporte público, se ele ou inexiste ou é incapaz de lidar com o aumento da demanda.
Apenas ao percebermos que todos somos partes de uma mesma sociedade, que o Estado somos nós, e que nossos problemas não são pontuais, mas interconexos, conseguiremos debater sensatamente como priorizar os gastos públicos.
O que esses três pontos têm em comum? Todos são consequências da falta de coesão social.