“Feliciano volta a afirmar que africanos são amaldiçoados
Em defesa protocolada no STF (Supremo Tribunal Federal), o deputado Marco Feliciano (PSC-SP) reafirmou que paira sobre os africanos uma maldição divina e procurou justificar a fala com uma afirmação que, publicamente, tem rechaçado: a de que atrelou seu mandato parlamentar à sua crença religiosa (...)
Em 2011, ele escreveu que ‘a podridão dos sentimentos dos homoafetivos leva ao ódio, ao crime, à rejeição’.
Na época, Feliciano também postou que africanos são amaldiçoados pelo personagem bíblico Noé (...)
Feliciano é acusado de induzir ou incitar discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, crime sujeito a prisão de um a três anos e multa. Não existe tipificação penal para homofobia.
Em sua defesa no STF, protocolada no dia 21, Feliciano disse que não é homofóbico e racista. Reafirma, porém, a sua interpretação de que há a maldição contra africanos.
‘Citando a Bíblia [...], africanos descendem de Cão [ou Cam], filho de Noé. E, como cristãos, cremos em bênçãos e, portanto, não podemos ignorar as maldições’, afirmou, na peça protocolada em seu nome pelo advogado Rafael Novaes da Silva.
‘Ao comentar [no Twitter] acerca da 'maldição que acomete o continente africano’’, disse sua defesa, o deputado quis afirmar que é ‘como se a humanidade expiasse por um carma, nascido no momento em que Noé amaldiçoou o descendente de Cão e toda sua descendência, representada por Canaã, o mais moço de seus filhos, e que tinha acabado de vê-lo nu’ (...)
Ao STF Feliciano não entrou em detalhes sobre sua afirmação sobre os gays - disse apenas que não há lei que criminalize sua conduta”
Racismo é impedir alguém de exercer seus direitos por conta de sua raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Mas incitar alguém a impedir outra pessoa de exercer seus direitos pelos mesmos fatores também é crime de racismo. Ou seja, se ele incitou alguém a praticar o racismo, ele praticou racismo.
Mas ele praticou racismo?
Procedência regional ou orientação sexual não entram nessa definição. Daí a razão de o parlamentar não negar ou tentar explicar o que disse a respeito dos homossexuais. Ele apenas lembrou à Justiça que não pode ser punido porque o Congresso – do qual faz parte – não incluiu orientação sexual na definição do que é racismo. Algo como 'não nego o que disse, mas vocês não podem me punir porque não aprovamos uma lei que permita a punição pelo que eu disse'.
Mas e a referência aos amaldiçoados da África?
Se deixarmos os erros sobre geografia, teologia e genética de lado (tecnicamente todos descendemos de africanos; a única diferença é quando nossos ancestrais saíram do continente), e focarmos apenas no elemento jurídico, veremos a razão de ser difícil de puní-lo criminalmente pelo que disse.
‘África’ não é um país ou nação, mas um continente, da mesma forma que Europa não é um país ou nação. Logo, ele não se referiu a uma nacionalidade, mas a uma procedência geográfica ou continental. E nenhuma das duas entra na definição de racismo.
Nem todo negro é africano e nem todo africano é negro, ainda que no imaginário coletivo a vejamos a África como o ‘continente negro’.
‘Africano’ também não é uma etnia. O continente tem centenas de etnias diferentes, algumas únicas daquele continente, outras que se espalham por vários continentes. Algumas originadas naquele continente, outras originadas alhures e que chegaram à África em algum momento.
E africano não é uma cor (você jamais entrou em uma papelaria e pediu um papel de cor africana). Ademais, na África há pessoas de todas as cores.
Voltemos ao que o deputado disse: que há uma ‘maldição em relação ao continente africano’. Se África não é um país ou nacionalidade, não é uma cor, não é uma raça e não é uma etnia (e muito menos é uma religião), a única forma de a Justiça dizer que ele incitou a prática de racismo com essa frase é se ela disser que ele quis dizer ‘negros’ ao dizer ‘África’.
O problema é que o direito penal não aceita esse tipo de interpretação, exceto se a própria lei for clara e autorizar explicitamente uma interpretação que estenda o sentido do que foi dito.
Pense no homicídio, por exemplo. A lei diz que é crime ‘matar alguém’. ‘Alguém’ é um ser humano. Se pudéssemos estender o termo ‘alguém’ para abranger insetos, qualquer pessoa que matasse uma barata poderia ser punida por homicídio.
A lei penal é sempre interpretada restritivamente justamente para evitar expor-nos às incertezas geradas por interpretações flexíveis.
‘Mas então quer dizer que não dá para fazer nada contra o deputado?’. Como já explicamos aqui, existe a possibilidade de puní-lo usando o regimento interno da Câmara, que exige que que seus membros ajam com decoro. Mas como também já explicamos aqui, decoro não é um ideal (o melhor possível), mas apenas o mínimo necessário (a linha abaixo da qual não se pode cair). A questão, portanto, é saber se alguém que diz que homossexuais têm sentimentos podres ou que há uma maldição sobre a África caiu abaixo de tal linha mínima de dignidade. E quem decide isso não é a Justiça, mas os demais deputados.