“Ciclista atropelado tem braço decepado e atirado em rio
Um estudante de psicologia de 22 anos atropelou no começo da manhã de ontem um ciclista na avenida Paulista, na região central de São Paulo. O impacto fez com que o braço da vítima fosse decepado e jogado para dentro do carro. O motorista fugiu, atirou o membro num rio e só então se entregou à polícia (...)
Se Siwek não tivesse se desfeito do braço que entrou pelo para-brisa do Honda Fit de seu pai, o membro poderia ter sido reimplantado mesmo passadas algumas horas do acidente. Até a noite de ontem, após buscas feitas pela polícia e bombeiros, o braço não tinha sido encontrado (…)
O motorista foi autuado em flagrante por tentativa de homicídio doloso eventual (assumiu o risco de matar, já que havia bebido), fuga do local do acidente, inovação do cenário (por se livrar do braço da vítima) e embriaguez ao volante. Até a noite de ontem, ele permanecia detido.”
A matéria diz, corretamente, que dolo eventual é quando alguém assume o risco (ou aceita o risco) de cometer o crime. No caso de homicídio, ele assume o risco de matar. Algo como ‘não quero matar, mas se matar, tudo bem’.
E a matéria acima diz que o motorista foi atuado por tentativa de homicídio doloso, ainda que seu dolo tenha sido eventual.
Mas é possível tentativa de dolo eventual? É possível alguém tentar alcançar que não quer alcançar? Ele não queria matar, apenas não se importava se matasse. Logo, como é que ele pode ter tentado matar?
Do ponto de vista lógico, tentar é querer um resultado e não alcançá-lo por uma circunstância alheia a sua vontade ou controle. Já dolo eventual é não querer alcançar um resultado, mas não se importar em alcançá-lo.
Segundo a maioria dos juristas, é possível, sim, tentar aquilo que não se quer alcançar. Como?
Simples: no dolo eventual, o criminoso pode não querer produzir um determinado resultado, mas ele aceita o risco de produzí-lo assim mesmo. Se ele assume um risco, ele pode ser impedido de gerar o resultado por uma circunstância alheia a seu controle.
No caso da matéria acima, ele bebeu e dirigiu, logo, ele aceitou o risco de matar. Não matou porque uma circunstância alheia a seu controle – não atingiu nenhum órgão vital do ciclista – impediu que a morte ocorresse. Não fosse por isso, o ciclista estaria morto. Houve dolo porque ele estava ciente do risco e o aceitou. Houve tentativa porque ele foi impedido de gerar o resultado por uma circunstância que estava fora de seu controle. Por isso é juridicamente possível indiciar ou acusar alguém por tentativa em dolo eventual.
Mas há um outro debate lógico: quando é que a conduta criminosa ‘homicídio’ teria se iniciado? Ao dar a partida no carro bêbado? Ao dirigir em uma avenida? Ou apenas depois de já ter atingido o ciclista? O problema é importante porque, embora seja infração gravíssima dirigir alcoolizado, se o motorista está assumindo o risco de matar logo ao dar a partida em um carro, qualquer motorista que seja flagrado pela polícia (ou por qualquer outra pessoa) dirigindo alcoolizado estaria prestes a cometer um homicídio. Mesmo que fosse impedido, seria uma tentativa de homicídio (dolo eventual), já que o resultado não foi alcançado graças à intervenção da polícia ou de um terceiro.
Os juristas concordam que o crime só passa a ser caracterizado com o início de sua execução. Não há tentativa, por exemplo, se você é dono de um carro, bebeu e pensou em dirigir; ou se você compra uma arma e pensa em cometer um crime: como você não começou a executar o crime, não há tentativa. Mas os juristas discordam a respeito do momento em que de fato passa a ocorrer a execução.
Para ajudar, eles convencionam que há início da execução do crime quando o ato é idôneo e inequívoco. No caso da tentativa de homicídio, a ação do criminoso deve ser capaz de matar (idônea) e gerar a certeza que ela foi praticada com a intenção de matar (inequívoca).
Essa regra é muito útil para os casos de dolo direto (quando a pessoa quer matar). Mas tente aplicá-la ao dolo eventual (quando a pessoa não quer, mas assume o risco). Como é que o ato pode ser inequívoco (praticado com a intenção de matar) se no dolo eventual o criminoso não queria matar (apenas não se importava com o resultado)?
Se isso já não é complicado o suficiente, pense novamente no problema posto acima: quando exatamente o ato passou a ser inequívoco no caso do dolo eventual? Quando ele começou a dirigir? Quando estava a 20 metros do ciclista? Ou quando estava a 2 metros?
Depois que ele atingiu o ciclista já não há dúvida que o ato é inequívoco, mas quando é que ele deixou de ser duvidoso e passou a ser inequívoco? Se uma cratera houvesse se aberto entre o ciclista e o carro um segundo antes da colisão, seria tentativa? Sem a cratera, o acidente era certo. E se fossem dez segundos? E se fossem 20 segundos? Agora troque ‘cratera’ por ‘blitz da polícia’, e você verá a dor de cabeça lógica. Como o criminoso não tem a intenção de matar ('apenas' não se importa de matar), como é que podemos dizer que sua conduta é inequívoca demonstração de que quer ou não se importa de matar? Afinal, mesmo depois de atropelar, ele ainda não quer matar e possivelmente no instante em que percebe que o atropelamento se torna impossível, ele passe explicitamente a não querer matar!
E por que toda essa dor de cabeça? Porque embora as alternativas gerem resultados menos controversos do ponto de vista lógico, eles são intoleráveis do ponto de vista social.
Se o motorista não fosse indiciado por tentativa de homicídio doloso, ele não poderia ter sido indiciado por tentativa de homicídio culposo porque não há tentativa em crime culposo (quando a pessoa sequer aceita o risco). Ele seria indiciado, então, por lesão corporal gravíssima, cuja pena máxima são 8 anos. A pena máxima para a tentativa de homicídio doloso é dois terços maior: 13 anos e 4 meses. Se o cliclista houvesse se machucado, permanecido no hospital por uma ou duas semanas, mas não tivesse perdido o braço, a pena máxima possível para a lesão corporal seria ainda muito menor: 5 anos.
Como outros países resolvem a questão? Dando uma flexibilidade muito maior ao magistrado em relação às penas possíveis. Em vez de polícia, Ministério Público e Justiça tentarem ajustar o crime à pena desejada, eles punem com o crime mais facilmente punível (às vezes até por crimes mais leves do que de fato cometidos, apenas para ter certeza de que o suspeito será de fato condenado). Como o espectro de penas possíveis é muito maior, o magistrado pode aplicar uma quantidade de pena maior ao réu se achar que a conduta merece uma punição exemplar, sem precisar 'esticar a lógica' para encaixar a conduta do réu em um crime cuja a pena seja suficientemente severa.