“Cartunista vai à Justiça para ter direito de usar banheiro feminino
Em uma noite de terça, uma senhora entra no banheiro feminino da Real Pizzaria e Lanchonete, na zona oeste de São Paulo. Ela veste uma minissaia jeans, uma blusa feminina listrada, meia-calça e sandália.
Momentos depois, é proibida de voltar ao banheiro pelo dono do estabelecimento. Motivo: uma cliente, com a filha de dez anos, reconheceu na senhora o cartunista da Folha Laerte Coutinho, 60, que se veste de mulher há três anos.
Ela reclamou com Renato Cunha, 19, sócio da pizzaria. Cunha reclamou com Laerte. Laerte reclamou no Twitter. E assim começou a polêmica.
O caso chegou ontem à Secretaria da Justiça do Estado.
A coordenadora estadual de políticas para a diversidade sexual, Heloísa Alves, ligou para Laerte e avisou: ele pode reivindicar seus direitos. Segundo ela, a casa feriu a lei estadual 10.948/2001, sobre discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero.
Proibido de entrar no banheiro feminino, mesmo tendo incorporado as roupas de mulher ao dia a dia, Laerte diz que pretende acionar a lei (…)
Laerte, que se define como alguém ‘com dupla cidadania’, diz que passou a usar o banheiro feminino após aderir ao crossdressing (vestir-se como o sexo oposto) e se ‘consolidar’ como travesti, mas não tem preferência por um banheiro específico.’ É uma questão de contexto, de como estou no dia. Não quero nem ter uma regra nem abrir mão do meu direito’, disse o cartunista, que, a pedido da Folha, criou uma tirinha sobre o caso (…)
Segundo Adriana Galvão, presidente da Comissão da Diversidade Sexual e Combate à Homofobia da OAB-SP, não há lei específica sobre o tema”.
E não há mesmo. E a questão começa, com o perdão do trocadilho, mais embaixo: para que serve a diferenciação do banheiro? E esse é um dos exemplos mais simples para entendermos o que é justiça.
Crescemos aceitando que há banheiros para o sexo masculino e há banheiros para o sexo feminino. O que nunca nos perguntamos é o que justifica essa diferenciação.
Se é só por conta do sexo, quem nasceu e permaneceu no sexo masculino deve usar um banheiro, e quem nasceu e permaneceu no sexo feminino deve usar o outro. Quem mudou de sexo (cirurgia de transgenitalização) deve usar o banheiro de seu novo sexo. Mas como devemos tratar os hermafroditas (aquelas pessoas que nascem com os dois sexos)? Teríamos que criar um terceiro banheiro. Na verdade, um terceiro e um quarto, pois alguns hermafroditas são preponderantemente masculinos e outros femininos.
Mas isso soa estranho. Diferenciar banheiro apenas baseado em sexo não faz sentido. Não temos um banheiro para loiros e outro para morenos, um para os baixos e outro para os altos, e assim por diante.
Não faria mais sentido justificar essa segmentação dos banheiros com base em como a pessoa se sente? Eu me sinto mais confortável na presença de mulheres, logo uso o banheiro da direita, não importando se sou homem, gay, travesti, homossexual masculino ou feminino, cross-dresser, mulher etc. E o da esquerda se me sinto mais confortável na presença de homens.
Mas essa segunda solução gera o problema da matéria acima: não preciso levar em consideração apenas como eu me sinto, mas também como os outros usuários se sentem. Eu posso não me sentir confortável em fazer xixi na presença de um hetero, cross-dresser ou travesti. Ou posso querer me cercar de pessoas das mais diversas opções e orientações sexuais.
A terceira hipótese é que os banheiros são diferenciados para manter o desejo sexual sob controle (ou algo do gênero). Para que enquanto o rapaz esteja fazendo xixi uma mulher não fique bisbilhotando, e enquanto a moça estiver retocando a maquiagem o tarado não a fique ‘xavecando’.
Bem, nesse caso o problema é outro: não é de sexo, mas de desejo ou interesse sexual. Um homem hetero tem desejo por uma mulher, e vice-versa. Mas um gay tem interesse por outro homem, e uma lésbica por outra mulher. Logo, teríamos que ter dois banheiros: um para quem tem interesse em homem e outro para quem tem interesse em mulher, não importando o sexo do interessado, certo? Não! Primeiro, há os que tem interesse tanto em homem quanto em mulher (bissexuais), e outros que não têm qualquer interesse em sexo. Logo, já seriam, de cara, quatro banheiros.
Mas a questão não é só quem tem interesse, mas o objeto do interesse. Há homens que, embora heterossexuais, não estão nem aí com o interesse de gays por eles; e há heterosexuais masculinos que abominam a ideia de que outros homens estejam interessados por eles. O mesmo acontece com as mulheres. Logo, teríamos que ter banheiros para homens heteros que não se importam com a presença de gays no banheiro, e outro para homens heteros que se importam com a presença deles. O mesmo teria de ser feito para mulheres, para os bissexuais, para os que não têm qualquer interesse sexual, e, finalmente, para os gays e lésbicas (afinal, há homossexuais que se importam com a presença de heteros do mesmo sexo em seu banheiro, e outros que não estão nem aí). Nessa lógica, o boteco da esquina no qual mal cabem 20 pessoas teria de ter, no mínimos, 12 banheiros diferentes.
Mas, convenhamos, a vasta maioria das pessoas não vai ao banheiro com finalidade sexual. Elas vão com finalidades biológicas ou por vaidade. Então a divisão acima também não faria qualquer sentido.
Uma quarta hipótese para a divisão dos banheiros é a higiene. Homens fazem xixi de pé e – uma grande quantidade – têm uma incrível dificuldade em manter os arredores limpo. As mulheres precisam sentar. Elas, obviamente, não querem sentar no local sujado pelos homens. Mais do que justo. Mas homens também precisam sentar em determinados momentos, certo? E, às vezes, as mulheres vão ao banheiro apenas para retocar a maquiagem, lavar o rosto, bater papo, etc. Bem, não seria mais justo diferenciarmos os banheiros entre aqueles que precisam sentar e os que não precisam sentar, independente do sexo?
Mas aí temos um outro problema: a maior parte das mulheres precisa usar o ‘banheiro de sentar’ e a maior parte dos homens o ‘de ficar de pé’. E quem já reparou em fila em fila de banheiro deve ter notado que a dos homens é mais rápida. Como o sistema de ‘banheiros de pé’ e ‘banheiros de sentar’, estaríamos forçando a maioria das mulheres não só a usar o 'banheiro de sentar', mas também a dividi-lo com uma parte dos homens. Não só daqueles que querem usa-lo para sentar, mas também porque um banheiro predominantemente usado por mulheres será mais limpo e alguns homens que poderiam ficar de pé vão preferir sentar para poderem usar o banheiro limpo (isso acontece, por exemplo, com empresas que usam idosos para pagar conta em banco porque eles têm tratamento prioritário).
Logo, essa solução também não funcionaria.
Ou poderíamos justificar a separação baseada no fato de que as mulheres são impuras (ou seriam os homens?), e por isso é essencial a separação. Bem, vamos dizer que não é necessário entrar nos detalhes de por que essa justificativa não é lá muito inteligente ou democrática.
Outra solução? Esquecer a divisão por sexo e focar na divisão baseada em tempo gasto: se você vai gastar muito tempo no banheiro, seja lá por qual razão, você usa o da esquerda. Se você vai gastar pouco tempo, use o outro.
Mas aí estaríamos discriminando contra pessoas mais velhas, pessoas com incontinência, pessoas deficientes físicas etc. Haveria uma fila enorme para os que demoram muito e nenhuma fila para os que não demoram nada.
Qual foi a solução encontrada pela lei, então?
Nenhuma. Você já deve ter ido a lugares onde não há divisão: você usa o banheiro que está livre e pronto. Em alguns locais isso funciona (todos os banheiros são limpos), e em outros, não (todos os banheiros são sujos). Fica a critério de cada estabelecimento decidir como ajustar o uso. Não teria lógica ter um banheiro só para homens em um salão de manicure, por exemplo. Mas em um show com milhares de pessoas alcoolizadas, é melhor manter os sexos separados por uma questão de segurança e higiene. Recentemente uma empresa aérea brasileira tentou designar alguns de seus banheiros como de uso exclusivo feminino, mantendo os demais compartilhados. Isso não só gerou protesto da ala masculina, mas também da feminina, que se sentiu constrangida.
O que a lei obriga é que deve haver banheiros disponíveis, que eles devam ser limpos e que sejam adaptados para o uso de deficientes físicos.
Em suma, o debate acima mostra como justiça não é apenas tratar os iguais da mesma forma e os desiguais de formas diferentes. Mas que justiça é tratar os desiguais de formas diferentes apenas na medida de sua desigualdade. Tentar ir além disso acaba complicado desnecessariamente algo que é melhor resolvido com um pouco de bom senso.
PS: Apenas por curiosidade, a lei citada na matéria prevê punição administrativa (e não criminal) contra o estabelecimento que discriminar contra homossexual, bissexual ou transgênero. Uma lei estadual não pode legislar sobre uma questão penal. E a tal lei só pune a discriminação contra um cidadão (logo, se a pessoa não é cidadã, ela não está protegida por essa lei). Além disso, ela pune o estabelecimento, e não quem discriminou. Logo, se quem discriminou foi a cliente, o estabelecimento não pode ser punido (da mesma forma que você não prende o dono do bar se um cliente mata o outro em seu restaurante). Pior: se essa lei for aplicada conforme quer a fonte citada na matéria, o homossexual poderia frequentar qualquer banheiro, mas o heterossexual apenas o banheiro de seu sexo. Mas a ideia da lei não é dar mais direito ao homossexual do que ao hetero. A ideia é dar os mesmos direitos.