“Um grupo de alunos da Universidade Estadual Paulista, uma das mais importantes do país, organizou uma ‘competição’, batizada de "Rodeio das Gordas", cujo objetivo era agarrar suas colegas, de preferências as obesas, e tentar simular um rodeio - ficando o maior tempo possível sobre a presa.
A agressão ocorreu no InterUnesp 2010, jogos universitários realizados em Araraquara, de 10 a 13 de outubro.
Anunciado como o maior do país, o evento esportivo e cultural, que reuniu 15 mil universitários de 23 campi da Unesp, virou palco de agressão para alunas obesas.
Roberto Negrini, estudante do campus de Assis, um dos organizadores do ‘rodeio das gordas’ e criador da comunidade do Orkut sobre o tema, diz que a prática era ‘só uma brincadeira’.
Segundo ele, mais de 50 rapazes de diversos campi participavam. Conta que, primeiro, o jovem se aproximava da menina, jogando conversa fora – ‘onde você estuda?’, entre outras perguntas típicas de paquera.
Em seguida, começava a agressão. ‘O rodeio consistia em pegar as garotas mais gordas que circulavam nas festas e agarrá-las como fazem os peões nas arenas’, relata Mayara Curcio, 20, aluna do quarto ano de psicologia, que participa do grupo de 60 estudantes que se mobilizaram contra o bullying.
No Orkut, os participantes estipulavam regras para futuras competições, entre elas cronometrar as performances dos ‘peões’ e premiar quem ficasse mais tempo em cima das garotas com um abadá e uma caneca. Há relatos de gritos de incentivo: ‘Pula, gorda bandida’.
Com a repercussão, a página do site de relacionamento foi excluída. Cópias dos posts espalharam-se pelo campus em Assis.
Em murais aparecem frases como ‘Unesp = Uniban’, referência ao caso a Geisy Arruda, que foi xingada por usar um vestido curto.
As vítimas não querem falar. ‘Uma das meninas está tão abalada que não teve condições de voltar à faculdade. Teme ficar conhecida como ‘a gorda do rodeio’’, afirma a advogada Fernanda Nigro, que acompanhou, na última terça-feira, uma manifestação de repúdio.
O grupo foi recebido pelo vice-diretor da Faculdade de Ciências e Letras, do Campus de Assis, Ivan Esperança. ‘Vamos ouvir os envolvidos e estudar as medidas disciplinares, mas não queremos estabelecer um processo inquisitório’, disse ele à Folha”.
Forçar alguém a fazer alguma coisa – por exemplo, participar de uma ‘brincadeira’ como a descrita acima – é crime: constrangimento ilegal e está previsto no artigo 146 do Código Penal, que diz que é crime “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda”.
Mas, interessante, um outro crime tem uma descrição muito parecida com a do constrangimento ilegal. É a tortura, que está na lei 9455/97. O artigo 1o (inciso I, alínea c) da lei de tortura diz que é tortura “constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental em razão de discriminação racial ou religiosa”.
Reparem que a única razão pela qual a conduta descrita na matéria acima não constitui tortura é porque ela não foi feita contra pessoas de uma raça ou religião específica, mas contra pessoas de um grupo específico (mulheres e/ou pessoas obesas) que não são abrangidas pela lei da tortura.
Às vezes as leis esquecem de proteger ou racionalmente preferem excluir algumas pessoas de sua esfera de proteção.
Por exemplo, se olharmos o artigo 1o da lei de racismo, ele teve de ser modificado. A primeira versão (de 1989) dizia que aquela lei abrangia “os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor”. Reparem que aquele texto não fazia referencia a religiões, nacionalidade ou etnia. Foi por isso que, em 1997, o legislador teve que corrigir aquela lei, que agora abrange “os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. (Reparem que a mesma lei ainda não faz referência à preferência sexual, logo homossexuais não podem alegar que sofreram racismo).
Até que a lei de tortura inclua outros detalhes como sexo, preferência sexual ou aparência, ela não servirá para proteger pessoas gordas, baixas, mulheres, homossexuais etc.
Ora, e faz diferença ser punido por tortura em vez de constrangimento ilegal? Faz. Faz porque o crime de tortura é equiparado aos crimes hediondos e, como tal, não dá direito a indulto, graça, anistia, a pagar fiança; e a prisão temporária pode durar até 60 dias (contra os 10 normais). Além disso, o crime de tortura sempre é cumprido, inicialmente, em regime fechado (o mais severo) e a progressão para os outros regimes é sempre muito mais demorada. Mas, se nada disso bastasse, a pena da tortura varia entre 2 e 8 anos, enquanto a do constrangimento ilegal varia de 3 a 12 meses, ou multa. Isso significa que alguém condenado por constrangimento ilegal provavelmente não chegará a pisar na prisão.
PS: A resposta para o título desse post é 'sim'. Mas não quando é agredida apenas por ser mulher ou ser obesa, mas quando ela, como qualquer outra pessoa, é submetida a tortura para que o torturador obtenha informação/confissão, ou quando o torturador deseja castigá-la, ou quando quer forçar a vítima a agir de forma ilegal.