“Na ONU, Cristina defende negociar Malvinas
Após publicar anúncios em jornais do mundo todo (...) pedindo que o Reino Unido negocie a soberania sobre as Malvinas (Falklands para os britânicos), a presidente da Argentina, Cristina Kirchner, disse ontem na ONU, em Nova York, que o colonialismo nas ilhas é anacrônico.
‘Como vocês pretendem que, a 14 mil km de distância, esse território integre o Reino Unido? [...] Não somente as Malvinas são argentinas como são parte dos contornos sul-americanos.’
A presidente falou ao Comitê Especial de Descolonização das Nações Unidas. Foi a primeira chefe de Estado a discursar no comitê. Faz 30 anos que acabou a última guerra pelo domínio do arquipélago -em 1982, as tropas argentinas se renderam.
‘Não estamos pedindo que [o Reino Unido] diga que as Malvinas são argentinas. Estamos pedindo só, e nada menos, que o país se sente para negociar’, disse ela.
Mais cedo, o premiê britânico, David Cameron, havia afirmado, em Londres, que a soberania das Malvinas é absolutamente inegociável.
'Isso não é um jogo de tabuleiro global, com nações passando territórios entre si. Isso é sobre os habitantes da ilha determinando seu próprio futuro', disse ele.
Perante o comitê da ONU, representantes do governo das ilhas afirmaram que o local deixou de ser colônia para virar território democrático ligado ao Reino Unido.
Disseram ainda que o povo que habita o local não é hispânico e que quer continua ligado ao país europeu. Um referendo com a população será realizado em 2013”
Esse debate é muito interessante para notarmos duas mudanças importantes no mundo nas últimas três ou quatro décadas, com enormes consequências jurídicas, políticas e militares.
O argumento sobre a proximidade física é apenas emocional. A Groelândia pertence à Dinamarca e não ao Canadá ou à Islândia. O Alasca pertence aos EUA e não à Rússia ou ao Canadá. As Ilhas Canárias e Madeira pertencem à Espanha e Portugal, e não a Marrocos. Todos são mais próximos de massas continentais de outros países. E outras ilhas são Estados soberanos (Japão, Islândia, Cuba, Austrália, Nova Zelândia, Maldivas etc). E, a bem da verdade, os continentes em si são grandes ilhas. Tampouco importa o fato de que um dia a ilha pertenceu à Argentina. A Argentina já pertenceu à Espanha, e antes disso às tribos que ali viveram em momentos diferentes, e parte do que hoje é seu território continental foi tomado do Paraguai mais ou menos na mesma época. Nem só por isso se discute o retorno desses territórios aos seus antigos donos.
Debater por que e como uma ilha ou parte de um continente se tornou ou não soberano e as razões históricas que o levaram a pertencer a esse ou àquele país é interessante, mas não é relevante aqui. Afinal, todo país existente hoje conquistou a soberania internacional sobre seu território atual porque foi capaz de rechaçar outros Estados.
A discussão interessante é outra:
Se você abrir qualquer livro de ciência política ou relações internacionais escrito até o século passado, você verá que ele, em essência, dizia que soberania interna era o domínio de um Estado sobre um determinado território e toda a população que ali vivesse. A consequência disso é que bastava um Estado invadir (ou comprar) e se impor sobre um território para que fosse soberano ali. Isso às vezes funcionava: o Brasil se expandiu assim, bem com os EUA. Mais recentemente, foi assim que a China se impôs sobre o Tibete. E às vezes não: o Iraque tentou se impor sobre o Kuwait em 1990 e deu no que deu. E foi também na base da força que a Argentina tentou se impor sobre as Malvinas em 1982.
Mas nas últimas décadas passamos a ver um movimento diferente, no qual soberania não é a imposição de um Estado sobre um território e seus habitantes, mas a submissão dos habitantes de um território a um Estado.
Parece a mesma coisa, mas não é. No primeiro, a imposição sobre a população é mera consequência da capacidade do Estado de exercer o monopólio da força de forma soberana. No segundo, é a vontade da população de se submeter à força de um determinado Estado que o torna soberano. Essa é uma modificação grande. Foi graças a essa diferença que o Sudão do Sul conseguiu sua independência via referendo em 2011 e o Timor Leste em 2002. E é isso que o primeiro ministro britânico está propondo fazer no ano que vem nas Malvinas. Algo do tipo ‘vamos perguntar aos habitantes da ilha a que país querem estar subordinados em vez de simplesmente ‘darmos’ os habitantes - como se fazia com os escravos - para a Argentina’.
Pode parecer retórica – afinal, o Reino Unido sabe que os habitantes das Malvinas são muito mais próximos cultural e economicamente dele do que da Argentina, e no passado o próprio Reino Unido lutou contra as populações locais em inúmeros países – como Índia e Quênia – para que não se tornassem independentes. Mas não é. É de fato uma mudança que aconteceu ao longo das últimas décadas nas democracias. Um exemplo disso é que um ano depois – em 2014 – haverá um referendo também na Escócia (que é parte do Reino Unido, e colada na Inglaterra) para saber se eles querem independência.
É uma enorme mudança na postura dos países democráticos, evitando não só guerras desnecessárias e desgaste interno junto aos seus próprios eleitores, mas também dando legitimidade ao monopólio da força que o Estado imporá sobre os habitantes daquele território. Em 1995, por exemplo, os habitantes de Quebec votaram para saber se queriam a independência em relação ao resto do Canadá. Venceram os que queriam continuar como parte do país. Nenhum tiro foi disparado e até hoje o país vive feliz. No mesmo ano, Peru e Equador gastavam suas limitadas riquezas em uma guerra para saber quem ficaria com a região do Alto-Cenepa; e Croatas, Bósnios e Sérvios entravam no quinto ano de uma guerra sangrenta de independência, na antiga Iugoslávia, que matou 104 mil pessoas, incluindo 37 mil civis.
E é aqui que aparece a segunda mudança importante. Antes, Estado e população eram conceitos distintos. O Estado (representado normalmente pelo tirano ou monarca de plantão e seu exército) se impunha sobre a população. Hoje, o Estado é a população. Ao menos nas verdadeiras democracias. O monopólio da força do Estado sobre a população não só precisa ser permitido pela população dentro das regras impostas pela própria população, mas é também policiado por ela. Policiado por meio das urnas, demonstrações públicas e todas as outras formas de pressão e controle político. É essa identidade que dá legitimidade ao Estado democrático moderno. E isso, possivelmente, foi o maior salto democrático do século XX, e talvez da história humana.