“Deficientes encaram estigma do sexo
Em suas fantasias sexuais, ela é uma loura forte e impetuosa, que domina seus parceiros. Na vida real, é uma virgem que depende de uma cadeira de rodas elétrica, e seu corpo só é tocado por cuidadores domésticos e profissionais de medicina.
‘Uma pessoa incapacitada é vista como uma criança’, diz essa mulher, Laetitia Rebord, 31. ‘E, inevitavelmente, crianças e sexo não combinam.’ (...)
Rebord, que diz ter sensações físicas agudas, procurou relacionamentos sexuais entre amigos de amigos, sites de namoro e até com garotos de programa. Mas diz que agora está disposta a pagar por sexo na Suíça ou na Alemanha, onde os "parceiros sexuais substitutos" são legais.
O tema dos parceiros substitutos chamou atenção na França em março, depois que a Comissão Nacional de Ética, que assessora o governo sobre questões de saúde, criticou a prática como um ‘uso antiético do corpo humano para fins comerciais’.
‘A prostituição é um debate falso. Os objetivos são diferentes’, disse Pascale Ribes, que em 2011 fundou o Grupo de Deficiências e Sexualidades, associação que defende os terapeutas sexuais na França.
‘O parceiro substituto permite que uma pessoa deficiente física, que não pode acessar a sexualidade de maneira satisfatória, reconecte-se com o corpo’, disse Ribes (...)
Para muitas feministas francesas, que associam o sexo indesejado à violência, a ajuda sexual é humilhante para as duas pessoas envolvidas.
‘É como dizer às pessoas incapacitadas que, como elas nunca terão uma vida sexual ou amorosa, vamos prescrever a ajuda sexual como paliativo’, disse Anne-Cécile Mailfert, membro da Osez le Féminisme (Ousem ser feministas)”
O debate não é novo. O próprio New York Time já em 1992 mostrava o debate na Holanda sobre a assistência financeira estatal para que pessoas pudessem obter sexo
Fora as necessidades orgânicas básicas, como dormir e comer, nada é mais importante para um ser humano do que a conexão com outros membros da espécie (ao menos para a vasta maioria de nós). E isso inclui, obviamente, sexo.
Na loteria do útero e da vida cada um tem um bilhete diferente. Alguns são muito desejados, outros pouco desejados (ou ao menos não são desejados da forma como gostariam ou querem ser). E a consequência disso é muitas vezes sentida na quantidade de oportunidades de manterem relações sexuais.
Alguns procuram compensar essa diferença entre o que desejam e o que conseguem através de serviços de prostituição.
Em todas as sociedades humanas, e em toda a história humana, a prostituição existiu e um de seus papéis tem sido o de suprir parte dessa carência. Se ela de fato supre ou não a necessidade de ser desejado, se ela agrava ou não o problema, ou se é a forma adequada ou não de resolver o problema, esse não é o espaço adequado para o debate. O fato é que ela sempre existiu, existe e provavelmente continuará a existir.
Há três debates interessantes que a o artigo acima pode despertar.
Primeiro, a substituição sexual é uma forma de prostituição?
Para saber se é, precisamos primeiro saber exatamente é prostituição. Se é qualquer prática de toque em órgãos sexuais primários (vagina e pênis, por exemplo), um ginecologista entraria no grupo. Se é qualquer toque íntimo no corpo, o massagista também seria prostituto. E se é qualquer prática erótica, quem vende material pornográfico ou a moça que desfila no carnaval também estaria no grupo. Se é em relação ao número de parceiros simultâneos, boa parte das pessoas (incluindo muitos casados) entraria na categoria. Se é sexo sem amor, o grupo é ainda maior. Sexo fora do casamento então... Se é fazer do sexo sua mercancia, a moça que casou com o milionário entra no grupo? E o massagista tântrico, artistas de filmes pornográficos ou eróticos?
Enfim, a definição de prostituição é uma construção cultural e quase sempre pessoal. Por isso é arriscado classificarmos o substituto sexual como sendo (ou não sendo) prostituição. Como apontado por uma das entrevistadas na matéria acima, é realmente relevante sabermos se a substituição sexual é ou não prostituição ou isso serve apenas para desviar desnecessariamente o debate?
O segundo debate é se a necessidade de contato sexual (ou de experiências eróticas) com outra pessoa é tão profunda que sua falta é caso médico ou psíquico. O debate é importante porque se sexo e erotização são necessidades, sua satisfação passa a ser um direito.
A chave aqui é distinguirmos necessidade de desejo. Necessidade leva a um direito. Desejo leva a uma possibilidade. Eu desejo uma Ferrari, mas eu não tenho necessidade de ter aquele carro. Eu não desejo andar de ônibus, mas eu necessito usá-lo.
Quem defende que sexo é uma necessidade e não uma mera possibilidade, argumenta que, fora as necessidades orgânicas básicas, como dormir e comer, nada é mais importante para um ser humano do que a conexão com outros membros da espécie. E isso inclui, obviamente, sexo e intimidade. Segundo essa linha, desejar e sentir-se desejado são necessidades humanas básicas. Inclusive em sua conotação sexual. (Outros levantam o argumento biológico: precisamos de sexo para nos perpetuarmos. Essa linha de argumento sofre com o fato de que, desde a década de 1960, sexo e procriação não andam, necessariamente, juntos).
Como dissemos acima, alguns nascem ou se tornam mais desejáveis do que outros. E se sexo é um direito, é justo privar os menos afortunados de satisfazerem suas necessidade pagando por sexo apenas porque uma outra parcela consegue satisfazer-se gratuitamente? Ao criminalizarmos ou moralizarmos a questão estamos criminalizando e moralizando apenas a questão ou estamos também discriminando pessoas e as impedindo de saciarem seus direitos e necessidades?
Aqui a questão não é se o sexo pago é a melhor solução, mas se é justo a sociedade impedir que ele aconteça. É esse o ponto da matéria republicada pela Folha ontem.
Um desdobramento desse segundo debate está relacionado com deficientes mentais.
Na maior parte dos países, não se pode fazer sexo com deficientes mentais porque isso constitui estupro, independente da idade biológica da vítima.
Mas se sexo é um direito, podemos privar o incapaz do exercício de tal direito? Afinal, ele tem necessidades como qualquer outro adulto, ele só não tem (de acordo com nossa lei) a capacidade de consentir. Em relação aos exercício de seus outros direitos, ele necessita do amparo de seu tutor ou responsável legal. Mas termos o responsável legal autorizando ou indicando com quem a pessoa pode fazer sexo soa, no mínimo, estranho.
Na dúvida, varremos o assunto para debaixo do tapete, mas isso não faz com que o problema deixe de existir.
O terceiro, e ainda mais controverso debate, é que se sexo ou experiências eróticas com outra pessoa são necessidades humanas tão básicas que aqueles que não conseguem satisfazê-las de forma ‘convencional’ (o que quer que isso signifique) merecem ter acesso por outros meios, por que não deveriam obter ajuda estatal, da mesma forma como o Estado paga por consultas a um psicólogo ou fisioterapeuta?
É esse o ponto levantado na Holanda há mais de 21 anos.
O desdobramento do problema, contudo, é saber quem realmente precisa (ou precisaria) pagar por sexo ou quem simplesmente prefere pagar por sexo por comodismo, egoísmo ou mera fantasia. O fato de não ser belo, ou de ter alguma deficiência física, ou não ter bens (ou mesmo não ter bom caráter) não impede, por si só, alguém de atrair outras pessoas. Logo, qual seria o critério para determinar quem carece de ajuda? Nesse sentido, o debate não é diferente daquele sobre cotas raciais: deixar a critério do indivíduo fazer sua auto-avaliação, com o risco de o sistema ser explorado, ou tentar estabelecer critérios objetivos, com o risco de o sistema excluir pessoas que mereceriam ajuda ou incluir pessoas que não a mereceriam?