“A Justiça condenou um shopping de Taubaté (interior de SP) e uma empresa de recreação a pagar R$ 40 mil de indenização a uma criança de seis anos com síndrome de Down que foi impedida de brincar.
A mãe da menina diz que o motivo alegado era que o lugar não tinha ‘brinquedos especiais’. O Taubaté Shopping negou (…) a discriminação”
Quando estamos crescendo nossos pais nos educam mostrando que para todo direito há uma obrigação. Para comermos a sobremesa, devemos primeiro encarar os vegetais; para podermos brincar no parque, primeiro devemos terminar a lição de casa; para podermos jogar vídeo game, precisamos primeiro tomar banho. Para todo prazer (direitos) há um fardo (obrigação).
Nossos pais estão nos educando para nos tornarmos bons adultos em vez de marginais. Mas eles estão errados. Não do ponto de vista de criação, o que ainda é uma questão em discussão (faz, no mínimo, 200 mil anos que eles estão debatendo a melhor forma de nos criar e infelizmente ainda não chegaram a um consenso), mas do ponto de vista jurídico. Do ponto de vista jurídico há, sim, a possibilidade de alguém ter direitos sem ter obrigações.
Primeiro, precisamos entender que as pessoas têm personalidades jurídicas diferentes. Isso significa que meus direitos são meus, e os seus são seus. E o mesmo com as obrigações. Se alguém comete um delito, a pena a ser aplicada (obrigação) será imposta contra a pessoa que cometeu o delito e não contra o seu filho. Caso contrário, todas as mães e pais de traficantes estariam presos.
Pois bem, todos temos o direito de adquirir direitos. Isso, sim, é universal. Não importa quão novo, velho, branco ou negro, alto ou baixo, homem ou mulher, magro ou gordo, religioso ou ateu: nossa capacidade de ter direitos é sempre a mesma. Do momento em que nascemos com vida ao momento em que morremos.
Obviamente nossos direitos variam de acordo com a pessoa. Alguns desses direitos serão diferentes (por exemplo, um bilionário terá direito ao seu bilhão, enquanto o pobre terá direito às suas migalhas), e outros idênticos (ambos têm direitos idênticos a terem suas vidas protegidas).
Mas, do outro lado da equação, há pessoas que têm a capacidade de contrair obrigações, mas nem todas as pessoas têm essa capacidade. Para que alguém possa contrair uma obrigação, essa pessoa deve saber o que está fazendo. E nem todos sabem o que estão fazendo. São o que a lei chama de incapazes. Eles são incapazes de contrair obrigações porque não têm discernimento suficiente de como o mundo funciona.
Vamos olhar a matéria acima: a matéria está correta ao dizer que é a criança quem terá direito à indenização, e não seus pais. O direito é da criança e não de seus pais. Quem queria brincar era a criança, e não os pais. Os pais estavam apenas protegendo o direito da criança e por isso processaram o shopping em nome da criança: mas o direito é dela e não deles. O dinheiro a ser recebido será dela e não deles (apenas administrado por eles até que ela se torne capaz de fazê-lo). Não importa a idade: ela tem a capacidade de adquirir direitos desde que nasceu, e manterá tal capacidade até que morra.
Mas vamos imaginar que a situação fosse a contrária e que a criança houvesse destruído um dos brinquedos do parquinho no shopping. Nessa hipótese, a criança não tem direito. O direito é do shopping (que tem o direito de não ter seus bens – inclusive os brinquedos – destruídos por vândalos). Mas a criança, por não ter discernimento do que está fazendo, não tem a capacidade de contrair obrigações. Logo, não se condena a criança a reparar o dano que causou.
Isso quer dizer que o shopping ficará no prejuízo? Não!
Embora a criança não tenha capacidade de criar obrigações para si, seus pais têm capacidade de criar obrigações para si.
Mas começamos essa explicação dizendo que a condenação de uma pessoa não pode ser transferida para outra. Então como é que a conduta da criança pode levar à condenação dos pais?
Na verdade, não se trata da transferência de uma condenação de uma pessoa (criança) para outra (pai/mãe). Trata-se de uma condenação dos pais por seu próprio erro (ou, no caso, omissão).
Os pais têm, em relação aos erros dos filhos incapazes (por serem menores, deficientes mentais etc), algo chamado culpa in vigilando, que em bom português significa algo como ‘a culpa pela falha na obrigação de vigiar’, ou seja, eles têm a obrigação de vigiar a conduta dos filhos incapazes para que eles não saiam por aí destruindo os direitos das outras pessoas. Se os filhos destruírem tais direitos, os pais são responsáveis. Mas reparem que a condenação dos pais a reparar os danos causados pelos filhos vai acontecer não porque a condenação do filho passou aos pais, mas porque os pais falharam em sua própria obrigação de vigiar a conduta do filho incapaz.
Até os 18 anos todos somos incapazes e nossos pais são responsáveis - civilmente (nunca penalmente) - por nossas ações. Mas se depois dos 16 anos eles acharem que já temos discernimento o suficiente para 'nos virarmos' civilmente, eles podem nos emancipar, que significa (a) que a partir daquele momento nós passamos a ser responsáveis por nossas próprias condutas e (b) que não é mais possível a culpa in vigilando deles em relação às nossas condutas.
PS: Embora haja emancipação civil, não há emancipação penal. Penalmente, pelas leis brasileiras, só nos tornamos imputáveis (puníveis) aos 18 anos.