Existimos como seres humanos há milhares de anos, mas não há lei que defina com clareza o que é ser humano. Simplesmente presumimos o que seja um ser humano porque a maior parte dos seres humanos são seres mais ou menos parecidos estética. Ponha um elefante e um ser humano em uma sala e você saberá o que é o elefante e quem é o ser humano.
Mas uma boa parte de nós têm dificuldade de lidar com seres humanos que fogem do padrão esperado (ainda que, tecnicamente, todos sejamos enormes mutações genéticas - algumas mais visíveis, outras menos – e carreguemos as consequências de nossas histórias de vida em nossos corpos).
Pense nas pessoas que vivem com um órgão artificial ou doado por alguém vivo ou extraído de alguém morto, que não têm uma parte do corpo ou têm mais de uma parte do corpo do que o ‘normal’. O fato de serem fisicamente diferentes não muda, do ponto de vista legal, o reconhecimento da personalidade jurídica dessas pessoas.
Casos como o das gêmeas acima espantam porque elas dividem o mesmo corpo. Mas, ao mesmo tempo, ajudam a entender as dificuldades em se definir o que somos - seres humanos.
Ser humano não é o corpo (caso contrário alguém sem um braço seria ‘menos ser humano’), mas também não há ser humano sem corpo. Não são órgãos (o fato de alguém ter tido um órgão transplantado não o torna meio Fulano e meio Beltrano) e nem sequer os órgãos essenciais (as gêmeas acima dividem o mesmo coração). E tampouco é a capacidade de pensar (alguém em estado vegetativo ainda é um ser humano). Certamente ele precisa estar vivo (caso contrário se torna resto mortal), mas a vida em si não o faz humano (um cachorro está vivo e nem só por isso é um ser humano).
Certamente a genética ajuda a distinguir seres com material genético humano das demais espécies, mas quão diferente nossos genes precisam ser para deixarmos de sermos humanos e passarmos a ser outro tipo de ser, ninguém sabe (mas é um debate que vários juristas começaram a ter nas últimas décadas e que talvez precise ser resolvido no próximo século).
Mas o simples fato de um tecido ser composto de material genético humano não o torna humano: os restos mortais de todos nós terão nosso material genético, mas nem só por isso serão seres humanos, mas meros cadáveres de corpos que um dia foram humanos.
Ser humano, ao que tudo indica, é o ‘conjunto da obra’. A soma de todas as partes, ainda que possa haver partes faltando ou sobrando.
E é aí que está a dificuldade de muitos de nós aceitarmos variações como a das gêmeas acima e simplesmente dizer que são ‘aberrações’ ou ‘bizarro;: se o ‘conjunto da obra’ não é perfeito, então não é um ser humano.
O problema desse enfoque, contudo, é que ele presume que haja um ‘conjunto da obra’ ideal, perfeito. E isso é mera ilusão. Pode até haver conjunto de obras esteticamente desejáveis (o que é um conceito puramente cultural e histórico) ou que sejam melhor adaptados para um determinado meio ambiente em um determinado momento (o que, por sua vez, está em constante mudança), mas não um ‘ser humano padrão’. E não cabe à lei regular o gosto das pessoas, e seria ilusão acharmos que podemos controlar o processo de evolução genética de nossa espécie. Daí a razão de as leis não tentarem definir o que é ser um ser humano.