Matéria da Revista Amanhã na qual discuto boas práticas para doações para campanhas políticas. Capa da Folha de hoje (28/11/09):
"Governador do DF é acusado de corrupção A Polícia Federal realizou ontem operação contra um suposto esquema de pagamento de propina envolvendo o governador José Roberto Arruda (DEM-DF). O inquérito cita gravação em que Arruda solicita a seu secretário extraordinário de Relações Institucionais, Durval Barbosa, que distribua R$ 400 mil a aliados. Arruda negou envolvimento. Disse que irregularidades vêm da gestão anterior." Do ponto de vista técnico, o título está errado. A polícia não acusa ninguém. A polícia investiga. O investigado éindiciado. É o Ministério Público, quando propõe a ação à Justiça, é que pode acusar alguém. No caso acima, ainda não há um processo. Pelo que o texto fala, o inquérito policial, que serve de base mais tarde para que o Ministério Público possa apresentar a acusação, aparentemente sequer foi concluído. As operações policiais descritas no texto ocorreram para informarem o inquérito, ou seja, para ajudarem na apuração dos fatos. Logo, Fulano ainda não foi acusado de nada. Quando muito, ele foi indiciado pela polícia (não da para saber lendo o texto). Saiu na Folha de hoje (27/11/09):
“Sob o argumento de que não havia no ano passado regra que proibia os deputados de direcionar dinheiro público para as suas empresas, a Câmara não deverá investigar os casos de parlamentares que usaram a verba indenizatória em 2008 em benefício próprio, como revelou ontem a Folha. O argumento para os casos de ontem é o mesmo que livrou da cassação o deputado Edmar Moreira (PR-MG), que apresentou notas de uma empresa de segurança sua. O Conselho de Ética entendeu que não havia uma regra explícita que impedisse isso, absolveu o deputado e só depois baixou ato proibindo pagamentos a empresas próprias e de familiares. Embora possa servir para novas absolvições, o argumento contraria o art. 37 da Constituição: usar dinheiro público seguindo os princípios da moralidade e da impessoalidade.” A matéria chama a atenção para um princípio básico da administração pública que raramente é citado mas que está explícito na Constituição Federal: os servidores públicos não devem fazer apenas aquilo que é legal (aquilo que é permitido pela lei) ou evitar aquilo que é ilegal (aquilo que é proibido pela lei). Além do critério da legalidade, eles também devem respeitar outros dois critérios importantes: o da moralidade e o da impessoalidade. Raramente vemos esse princípios serem usados e mencionados, mas eles existem e são muito úteis. O que o servidor público faz não deve ser apenas legalmente aceitável, mas também moralmente aceitável. Para ser moral, a conduta deve ser aceitável pela sociedade, não importando se a lei a permite. A lei cobre um universo muito menor do que a moral. Muitas coisas que são inaceitáveis para a sociedade (ou seja, são imorais) são legais para a lei. Por exemplo, o furto de uso (quando alguém retira um objeto de outra pessoa sem sua autorização, usa e depois devolve) não é ilegal pois não está previsto na lei penal, mas é obviamente imoral. Alguém usar a verba pública para beneficio próprio pode até não ser ilegal, mas certamente é imoral, pois a sociedade hoje em dia não aceita esse tipo de comportamento. Mais: o que o servidor público faz não pode ser pessoal, ou seja, ele não pode fazer ou deixar de fazer algo porque ele gosta ou desgosta de alguém. E isso inclui ele mesmo. Ele não pode se conceder um direito só porque ele se acha especial. Quando ele fizer algo, ele deve fazê-lo porque o que ele está fazendo é legal (permitido pela lei), moral (aceito pela sociedade) e impessoal (ele agiria da mesma forma se o beneficiado fosse seu pior inimigo ou o prejudicado fosse seu melhor amigo). Se qualquer um dos três princípios não foi respeitado, ele agiu em desacordo com o decoro (honra) exigido por seu cargo. Saiu na Folha de hoje (24/11/09): “O ex-chefe da Renault processa a FIA por ter sido banido da F-1 no caso do escândalo de armação do GP de Cingapura-08. Além de querer a suspensão da pena, Flavio Briatore quer uma indenização de 1 milhão” É uma daquelas tecnalidades do direito: na verdade ele não foi banido. As equipes e pilotos é que foram proibidos de ter qualquer envolvimento com ele, sob pena de não poderem participar das competições geridas pela FIA. É o que diz o extrato abaixo do site da FIA: “As regards Mr. Briatore, the World Motor Sport Council declares that, for an unlimited period, the FIA does not intend to sanction any International Event, Championship, Cup, Trophy, Challenge or Series involving Mr. Briatore in any capacity whatsoever, or grant any license to any Team or other entity engaging Mr. Briatore in any capacity whatsoever. It also hereby instructs all officials present at FIA-sanctioned events not to permit Mr. Briatore access to any areas under the FIA’s jurisdiction. Furthermore, it does not intend to renew any Superlicence granted to any driver who is associated (through a management contract or otherwise) with Mr. Briatore, or any entity or individual associated with Mr. Briatore. In determining that such instructions should be applicable for an unlimited period, the World Motor Sport Council has had regard not only to the severity of the breach in which Mr. Briatore was complicit but also to his actions in continuing to deny his participation in the breach despite all the evidence”. A matéria é legal para lembrar que a FIA, assim como a FIFA e seus pares, é um tribunal arbitral, ao qual os times e pilotos se submetem quando decidem participar de um campeonato. E suas decisões são soberanas, ou seja, não podem ser contestadas no judiciário de qualquer país. A única solução possível para quem não ficar satisfeito com a decisão do tribunal arbitral é recorrer ao próprio tribunal arbitral (normalmente a um órgão mais importante ou mais amplo dentro daquele tribunal). O mesmo ocorre dentro dos tribunais desportivos nacionais. Se um time não está satisfeito com a decisão do TJD (Tribunal de Justiça Desportiva), ele não pode recorrer ao judiciário. Ele tem de recorrer ao STJD, que faz parte da mesma justiça desportiva. Saiu na Folha de hoje (19/11/09):
"Mãe esquece filha no carro e bebê morre Uma bebê que completaria seis meses no próximo sábado morreu ontem após ter sido esquecida pela mãe por cerca de seis horas dentro de um carro estacionado em um local sem sombra na rua Salvador Mastropietro, na Vila Ema (zona leste). Segundo a Polícia Civil, o bebê morreu por asfixia e apresentava sinais de desidratação. A mãe, Vilma da Silva, 40, gerente financeira de uma metalúrgica, deixou a filha mais velha, de seis anos, na escola e levaria a caçula à creche, mas ela se esqueceu e foi direto para o trabalho. Ontem, seu trajeto foi diferente do de sua rotina, quando ela costuma deixar a mais nova primeiro, no Jardim Anália Franco, e, depois, levar a de seis anos ao Tatuapé. Vilma foi indiciada por homicídio culposo (sem intenção). (...) A mulher contou à polícia que chegou à empresa onde trabalha por volta das 9h e só percebeu que a filha Sofia Silva e Sousa estava trancada no Fiesta, que tem película que escurece os vidros, por volta das 15h. Nesse horário, ela iria buscar a criança na creche para levá-la ao pediatra. Nos últimos dias, Sofia estava resfriada, de acordo com amigos da família. Segundo Luiz Neves de Oliveira Junior, 32, colega de Vilma, quando ela viu a criança no carro, se desesperou, a pegou no colo e voltou para a empresa pedindo ajuda. "Até achei que ela tivesse sido assaltada." (...) Segundo a PM, ao chegar ao hospital, Sofia já estava morta. "Ela repetia várias vezes, chorando, "matei minha filha, matei minha filha'", disse Márcia Neves, uma das donas da empresa onde Vilma trabalha. (...) Ela voltou ao trabalho há pouco tempo, após a licença-maternidade. Segundo amigos, ela é uma mãe "dedicada" e tinha um horário diferenciado de trabalho para poder atender às necessidades das filhas" Por mais triste que seja, esse é um crime (sim, é um crime) muito mais comum do que se pensa. A razão é simples: o recém nascido ainda não entrou na rotina dos pais. Como o bebê não fazia parte da antiga rotina, e como os pais estão agindo de acordo com o que faziam antes, acabam esquecendo do novo integrante da família. Esquecem de dar medicamento, de alimentar, de dar banho, de trocar a fralda, de buscar na creche ou de tirar do carro. Mas o caso é interessante para falarmos de três coisas: O que é um crime culposo? Culposo é o crime em que o criminoso não quer ou não assume o risco de causar o resultado. A mãe não quis ou assumiu o risco de matar a criança. Ela matou sem querer. Ela matou porque ela agiu de uma forma que uma pessoa normalmente não deveria agir. Isso é a culpa. A culpa ocorre quando a pessoa age com imprudência, negligência ou imperícia. Imprudência significa que a pessoa não tomou os cuidados necessários que qualquer outra pessoa tomaria. Negligência significa que a pessoa não tomou conta como uma pessoa normal tomaria. E imperícia significa que a pessoa não domina a técnica necessária para fazer o que tentou fazer. No caso acima, a mãe foi negligente. Por isso ela é responsável por um crime culposo. Vale lembrar que as penas para os crimes culposos são menores do que as dos crimes dolosos (quando o agente quis ou assumiu o risco de cometer o crime). Nem todo crime é punido na modalidade culposa. A regra é que todo crime é punível na modalidade dolosa. Apenas quando a lei é clara de que tal crime é punível na modalidade culposa é que vai haver uma punição. No caso do homicídio, o Código Penal fala claramente que uma pessoa pode ser punida se matar outra, mesmo que tenha sido sem querer. Mas o mesmo Código Penal diz que, se os efeitos da morte forem muito pesados no criminoso, o juiz pode conceder o que chamamos de perdão judicial. Ou seja, ele não vai punir a mãe que matou o filho culposamente (sem querer), se ele ficar convencido de que o trauma, sentimento de culpa e remorso da mãe são maiores do que qualquer punição que a justiça possa aplicar contra ela. A mãe já terá de viver o resto de sua vida se culpando pela morte de seu filho. Por que mandá-la para a prisão? Ter de viver com a memória daquela morte já é punição o suficiente. Por isso o juiz pode perdoá-la. Do programa CQC: Algumas lições bem interessantes do ponto de vista jurídico: 1 - Vadiagem é um delito no Brasil. Está lá na nossa de Lei de Contravenções Penais, no art. 59: “Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita: Pena – prisão simples, de 15 dias a 3 meses”. Essa lei, como todas as outras leis penais, é aplicável em todo o país. Não só na cidade do vídeo acima. A única diferença entre a cidade da matéria no vídeo e o resto do Brasil é que lá a polícia resolveu cumprir o que a lei determina. E como essa lei, de 1941, hoje parece absurda para muita gente, fica parecendo estranho/engraçado/trágico. Mas o fato de o Estado não estar aplicando a lei não quer dizer que ela deixou de ser lei. Uma lei não é revogado pelo desuso. Para ser revogada, é necessário uma outra lei que a modifique. Por exemplo, até o meio deste ano, mendicância (ou seja, ficar pedindo na rua) também era um delito (era o art. 60 da mesma lei). Ai veio uma nova lei e disse que a antiga lei estava revogada a partir daquele momento. O Congresso Nacional poderia ter feito o mesmo a respeito de vadiagem. Não o fez. Logo, a lei é valida e deveria ser aplicada. Se achamos que essa lei é estranha, a crítica não deve ser feita contra a cidade que está aplicando tal lei, mas contra o Congresso Nacional, que ainda não a revogou. E como somos nós, eleitores, que escolhemos nossos congressistas, a culpa é nossa. Aliás, vale lembrar que as cidades não têm direito de criar ou revogar leis penais. Esse é um direito que, no Brasil, só o Congresso Nacional (ou seja, o poder Legislativo federal) tem. Por fim a respeito de vadiagem: por mais estranho que pareça, ela é inafiançável. Da mesma forma como os crimes de terrorismo, racismo, tráfico de drogas e hediondos. Isso porque, se a pessoa não tem paradeiro certo, a Justiça não conseguiria encontrá-la caso ela aguardasse julgamento em liberdade. 2 - Os policiais acertam quando o prendem pelo crime de desacato, mas erram no crime de desobediência. O crime de desacato é quando alguém desrespeita ocargodo servidor público. O desrespeito é ao cargo e não à pessoa. Diz o Código Penal “Art. 331 - Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela: Pena - detenção, de 6 meses a 2 anos, ou multa”. O objetivo da lei é proteger a respeitabilidade do cargo e não a dignidade da pessoa. Para proteger a dignidade da pessoa, existe um outro crime no Código Penal: a injúria. O desacato não ocorre só com palavras (por exemplo, dizer que o policial é vagabundo), mas também com gestos. Foi o que ocorreu na matéria acima: a partir do momento que o jornalista/comediante resolveu mostrar o dedo do meio com a intenção de ofender o policial, houve o desacato (ele cometeu o mesmo erro que o piloto de um avião americano cometeu há alguns anos quando foi ser fotografado pela Polícia Federal no Brasil e mostrou o dedo do meio aos policiais na fotografia). Portanto, os policiais do vídeo acima agiram corretamente quando o prenderam por desacato (alias, o único delito cometido pelo jornalista na matéria). Mas eles erraram quando o prenderam por desobediência (reparem que eles prendem por desacato e desobediência. Dois crimes). Desobediência é desobedecer uma ordem legítima (ou seja, que pode ser dada) de um servidor publico. Diz nosso Código Penal: “Art. 330 - Desobedecer a ordem legal de funcionário público: Pena - detenção, de 15 dias a 6 meses, e multa”. Ora, em nenhum momento os soldados da matéria deram qualquer ordem legal que tenha sido descumprida pelo repórter/preso. Ele cumpriu todas as ordens legais. Os PMs erraram nesse ponto. 3 - Por fim, reparem que o repórter/comediante foi conversar com o delegado depois do incidente. Ele, erroneamente, achou que o delegado é o chefe dos soldados. Não é. O delegado é chefe na Polícia Civil, ou seja, ele é o chefe dos detetives, escrivães, investigadores, etc). Os soldados são da Polícia Militar. Essas instituições são completamente independentes, têm objetivos distintos (a PM serve para prevenir os delitos e a Civil para investigá-los depois que tiverem acontecido), e estruturas muito diferentes. O chefe dos soldados da PM é o comandante do quartel/guarnição ao qual eles pertencem. O delegado pode até falar a respeito da razão pela qual estão fazendo valer a lei que proíbe a vadiagem, mas ele não é juridicamente responsável pelas ações dos membros da Polícia Militar. 4 - PS: Reparem que o delegado também erra! Quando ele tenta explicar o que é vadiagem, ele acaba explicando o que é mendicância, e aparentemente ainda não percebeu que mendicância já não é mais um delito no Brasil. Capa da Folha de ontem (16/09/09):
“Governo quer taxação maior da poupança O governo propõe tributar em 22,5% o rendimento das cadernetas de poupança com saldo acima de R$ 50 mil. Se a proposta for aprovada até o fim do ano pelo Congresso, passará a valer a partir de 1º de janeiro. A cobrança ocorrerá na fonte, mensalmente. No caso de poupadores com mais de uma conta cuja soma ultrapasse os R$ 50 mil, será feita na declaração de IR.” Errado. Notem a diferença entre os verbos usados no título e na matéria: no título falamos em taxar; na material falamos em tributar. São sinônimos? Não. A taxa, assim como o imposto, a contribuição social, a contribuição de melhoria ou o empréstimo compulsório, é um tipo de tributo. Tributo é o nome genérico que usamos para essas cobranças. Assim, toda taxa é um tributo, mas nem todo tributo é uma taxa. Apenas aqueles tributos cobrados por um serviço prestado (ou colocado à disposição pelo Estado), ou pelo exercício do poder de polícia do Estado, e que possam ser individualizados, podem ser taxas. No caso acima, a última palavra utilizada dá uma dica a respeito do tipo de tributo a ser cobrado: será um imposto. Por tanto, o governo não quer "taxação maior". O governo quer "tributação maior" ou "cobrar mais imposto". Saiu na Folha de hoje (07/09/09):
“O delegado de Itaparica (BA), José Magalhães Filho, decidiu adotar medidas polêmicas para reduzir os índices de criminalidade no município. Entre as novidades está a proibição de motociclistas usarem capacetes (iniciativa que vai contra o Código de Trânsito Brasileiro). O objetivo é identificá-los em caso de crimes praticados. Além disso, moradores que forem viajar e não deixarem os objetos de valor em algum vizinho não poderão prestar queixa depois, afirma. Segundo ele, como há o aviso, o morador estará correndo o risco por conta. Destino turístico de mais de 100 mil pessoas durante o verão, a ilha de Itaparica tem afugentado visitantes nos últimos anos por conta do crescimento da violência e do uso de crack. Batizadas pela população de 'Leis Magalhães', as novas regras também estabelecem que o restaurante que receber a reserva de um grupo de turistas e não avisar a polícia sobre a chegada será responsabilizado se houver um assalto no local. A medida não agradou a todos. Hiltomar Gusmão, 41, proprietário de uma pizzaria, é contra. 'Acho isso um absurdo. Se eu precisar ligar para a polícia toda vez que chegar um grupo de turistas, vou acabar perdendo o meu negócio pela hostilidade que irá ser criada', diz. 'Nós estamos nos disponibilizando para reforçar a segurança do grupo, para que eles possam fotografar, passear em paz. Agora, se eles não querem nos avisar, isso será problema deles', diz o delegado. Desde que assumiu a delegacia, há seis meses, Magalhães afirma que o número de casas arrombadas por mês caiu de 80 para 4. "Nós precisamos cumprir a lei, mas ela deve ser relativizada em alguns casos. É preciso bom senso", afirma. 'Eu nem precisei fiscalizar as medidas. Só de eu dizer que iria aplicá-las, não houve nenhum registro de assalto nos últimos dias', diz o delegado, que terá uma reunião com um juiz da Vara Criminal de Itaparica para prestar esclarecimentos sobre as 'Leis Magalhães'” O delegado está errado dos dois lados: primeiro, e óbvio, o fato de as pessoas não apresentarem notícia-crime não quer dizer que os crimes não estão ocorrendo. Se ele informa de antemão que não fará nada a respeito dos crimes, por que as pessoas vão perder tempo avisando à polícia que o crime ocorreu? O número de delitos não diminuiu. O número de delitos levados ao conhecimento da policia é que diminuiu. Embora no caso acima seja muito fácil (e mesmo jocoso) perceber a ingenuidade do raciocínio do delegado, a mensagem para quem tem de lidar com esse tipo de estatística é seria: tomem cuidado com o que é causa e o que é consequência. No caso acima, a causa da diminuição dos relatos de crimes não é a diminuição dos crimes em si, mas a atitude do delegado de estabelecer que não levará os inquéritos adiante. O segundo erro do delegado é fazer normas. Ele não tem poder para isso. A polícia pertence ao poder Executivo, e ao poder Executivo cabe fazer cumprir as normas estabelecidas pelo Legislativo, e não criar normas. É a repartição clássica de competência entre os poderes. Quando o Executivo começa a fazer leis, cria-se uma ditadura. PS: E como não poderia deixar de lembrar, óbvio que ainda que o delegado não tivesse “criado” essas “normas” surreais, ainda assim o número de notícias-crimes informadas à polícia a respeito de assaltos seria zero, já que na lei não existe um crime chamado assalto. Existe roubo, extorsão e furto. Mas, nunca, assalto. Saiu na Folha de hoje (02/09/09):
“Apesar do pouco tempo de permanência no STF (Supremo Tribunal Federal), o ministro Carlos Alberto Menezes Direito terá sua morte especialmente sentida, dada a contribuição que deu aos debates e aos julgamentos nos dois anos que completaria na corte no próximo dia 5. Abriu-se a vaga e o mundo jurídico cumpre o ritual da substituição, em que, desde logo, surgem muitos candidatos a um único lugar. A agitação das previsões e das candidaturas traz a circunstância de que a roda da história reservou ao presidente Lula o destino de substituir a maior parte dos membros do STF, que pode ultrapassar 70%, quando Eros Grau for atingido pela aposentadoria compulsória em agosto de 2010. Embora o interesse maior seja o de acompanhar (com seus boatos, defesas ardorosas e críticas azedas) os bastidores das disputas pela preferência do chefe do Executivo, os segmentos da advocacia, do Ministério Público, da magistratura e mesmo setores religiosos, de grandes grupos econômicos, entre outros, estimulam a propaganda discreta ou explícita das qualidades de seus preferidos. A regra é a de fazer, no Palácio do Planalto o rol (geralmente referido como "grade") dos candidatos, já reduzido, apto para que o presidente da República escolha, um nome, ou mesmo nenhum, caso em que se reabra a disputa. O ministro é nomeado depois de aprovado pela maioria absoluta do Senado Federal, ou seja, a metade mais um de todos os senadores. Normalmente a aprovação é ato formal, pois o nomeado passa pelo pente fino da seleção antes da escolha final. Menezes Direito foi caracterizado pela formação universitária, cultural e política no Rio de Janeiro, embora paraense de nascimento.” Errado. O correto seria “mais da metade”. Embora “metade mais um” (ou “cinquenta por cento mais um”) pareça sinônimo de “mais da metade” (ou “mais de cinquenta por cento”), não é. Temos 81 senadores no Senado Federal (3 por unidade federativa: 26 estados mais o Distrito Federal). Se calcularmos usando “metade mais um” Metade mais um dos senadores , seria 81/2 + 1 = 40,5 + 1 = 41,5. Como não há 41,5 senadores, o primeiro número redondo acima seria 42 senadores. Se calcularmos usando “mais da metade” Metade mais um dos senadores , seria 81/2 = 40,5.. Como não há 40,5 senadores, o primeiro número redondo acima são 41 senadores. Em outras palavras, dependendo da expressão que usarmos, aumentamos o número de votos de 41 para 42. O correto são 41 votos e não 42 votos para a aprovação por maioria absoluta. O correto é “mais da metade”. Nunca “metade mais um” ou “cinquenta por cento mais um”. Continuando o post anterior:
Este caso é bem interessante para entendermos a questão da retroatividade da lei penal. A lei não retroage para prejudicar a pessoa. Nunca. Esse é um princípio básico de democracia. Imaginemos o seguinte cenário: hoje você compra uma bicicleta. Amanhã o Congresso aprova uma lei dizendo que comprar bicicleta é um crime. Óbvio que seria injusto você ser punido por aquele novo crime, já que quando você agiu aquela ação ainda não era considerada um crime. Ou seja, a nova lei não retroage para prejudicar a pessoa. Outro exemplo: homicídio é apenado com uma pena máxima de 20 anos. Você mata alguém hoje. Amanhã o Congresso aprova uma lei aumentando a pena máxima para 40 anos. Depois de amanhã começa seu julgamento. Você será julgado com base na lei antiga, ou seja, você será condenado a, no máximo, 20 anos. A lei, novamente, não retroagirá para prejudicá-lo. Por outro lado, a lei retroage para beneficiar uma pessoa. Se o caso acima fosse inverso, ou seja, a nova lei previsse uma pena menor, você seria julgado pela nova lei. Outro exemplo: se o crime deixasse de existir na nova lei, você seria libertado, ainda que sua sentença já tivesse transitado em julgado. O caso exposto no ultimo post é muito interessante porque a nova lei não aumentou nem diminuiu as penas, ela simplesmente unificou dois delitos em um. Até o início deste mês, nós tínhamos dois artigos: o 213, que punia com penas entre 6 e 10 anos de reclusão o crime de estupro (introdução forçada do pênis na vagina), e o art. 214, que punia o crime de atentado violento ao pudor (qualquer outra forma forçada de sexo), também punido com pena entre 6 e 10 de reclusão. A nova lei eliminou o artigo 214 e estabeleceu que, de agora em diante, considera-se estupro (art. 213) qualquer forma forçada de sexo, seja vaginal ou não. Mas ela não mudou a pena: 6 a 10 anos de reclusão. No caso que vimos no ultimo post, o crime foi cometido antes da nova lei, mas só foi descoberto depois que a nova lei foi publicada. Os jornalistas devem tratar o assunto como atentado violento ao pudor ou como estupro? Bem, Fulano foi indiciado e acusado por estupro. Isso porque tanto a polícia quanto o Ministério Público entenderam que a nova lei não poderia ser aplicada a fatos anteriores se ela piorasse a situação do acusado, mas que, como a nova lei apenas uniu dois crimes e não modificou a pena prevista, ela pode ser retroagir e ser aplicada ao crime cometido antes de sua existência. Por isso a denúncia foi oferecida com base na nova lei. Mas se lermos com cuidado a decisão do desembargador que indeferiu o pedido de habeas corpus, fica claro que ele diz que o TJ ainda não tem certeza de como tratar o caso. Diz ele: “Quanto a menção da Lei 12.015/09, esse fato não invalida o processo na medida em que a acusação é identificada pela descrição fática inserta na denúncia, não pela capitulação jurídica nela constante". Traduzindo para o bom português, o que ele está falando é que a denúncia descreveu o fato (ou seja, os eventos) e que, mesmo que a polícia/MP/juiz da primeira instância estejam errados em enquadrar o crime como estupro e não como atentado violento ao pudor, os fatos ainda assim justificam a prisão. Em outras palavras, ainda que se trate de um atentado violento ao pudor, o crime pode ser julgado baseado na denúncia por estupro porque a denúncia contém a descrição dos fatos, e isso é o suficiente para o juiz julgar corretamente. O fato de o juiz de primeira instância ter aceito uma denúncia não quer dizer (a) que o crime será julgado com base no artigo citado na denúncia e que (b) a sentença será proferida com base no artigo usado na denúncia. O juiz pode reclassificar o delito a qualquer momento. E como o jornalista deve tratar a questão? Simples: quando estiver se referindo a como as instituições estão tratando o caso até agora, use o que eles estão usando: estupro. Quando for expressar a opinião do jornal, faça menção ao fato de que antes de agosto esses crimes eram distintos e que tal contudo era considerada atentado violento ao pudor. E, na dúvida, simplesmente diga “crimes contra a liberdade sexual” ou “contra a dignidade sexual”, que são os termos genéricos que podem ser usados sem medo de errar. Ou, se preferir, "acusado de cometer atos libidinosos". |
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